Pela cara do
porteiro, já sei que é hábito ver passar por ali rostos de todos os tipos e
gêneros, com uma mesma pergunta: “Por favor, onde é o apartamento do Anand
Rao”? A campainha atende no primeiro toque e dou de cara com Fábio Barros, uma
figura muito gente boa que foi um dos anfitriões daquela tarde. Só mais tarde,
quando ele fez uma performance com a Nahla Tartuce, é que eu descobri que
aquele careca charmoso canta. E canta muito. Lembrei de Boy George no início da
carreira, com aqueles olhos miúdos e oblíquos que pareciam saber de tudo, rir
de tudo e viver a vida de um jeito só dele.
O
apartamento é um estúdio. E é apartamento. De um dos lados da
estante-cristaleira, uma mesa com os comes e os bebes (cada um leva o seu, para
não ter problema). Do outro, cadeiras para a plateia, cadeiras para os
artistas, caixas de som, microfones. No cantinho, Mestre Henrique Inácio, do
Brasília Estúdios (sempre incentivando os músicos do DF), comanda o som de
todos, escritores e músicos.
Logo de
cara, sou raptada por Jorge Amâncio, Negrojorgen, para um bate-papo rápido,
porque é ele quem vai entrevistar a mim e ao poeta Alceu Brito Corrêa, que
acaba de chegar. Enquanto isso, uma rapaziada alegre, cheia de ansiedade, afina
voz e violão. Kika Ribeiro E Jahya são para mim,até aquele momento, uma banda
de reggae que vai estar junto no sarau.
Anand Rao
está na Bienal, cobrindo esse evento espetacular que o Distrito Federal teve o
bom gosto de patrocinar, e eu fico pensando quem será que vai operar a câmera
que envia todo o sarau para a internet. E ainda tem os notebooks — o da banda e
o meu —, que precisam ser sincronizados, pelas mãos de Talita Keyse e de
Fabiana Reis, com a transmissão. É o passo a passo do sarau.
Escuto,
então, alguém chamar: “Agnes”. E conheço Agnes Regina, dona da casa e mulher do
Anand Rao. Até aí, mera formalidade. Mas Agnes só é formalidade para quem ainda
não a conhece. Essa criatura multifacetada me prova que Amélia nunca foi uma
mulher de verdade. Agnes Regina é. Ao longo da tarde e início de noite, conheço
uma leoa da administração. Ela opera o vídeo, controla as entradas, avisa a
hora de parar, fala sobre os e-mails que entram, se levanta, retira copos e
pratos sujos da mesa, leva para a cozinha e joga fora nas latas de lixo
seletivas, dá uma olhada no trabalho do pessoal dos notebooks, repercutindo o
sarau em outros perfis das redes sociais, sorri, fala duas palavras, retoma a
mesa de trabalhos e faz um “psiu” discreto para os mortais que se empolgam na
conversa paralela. Agnes Regina é que é mulher de verdade.
Os trabalhos
começam. Os integrantes de Kika Ribeiro E Jahya se entreolham e mandam a
primeira música. Eu arrepio. Como é que uma mulher pequena daquelas solta um
vozeirão sem tamanho? Kika é útero, força da natureza. Os violões brincam, a
percussão não vai acima do que pode, nunca. Nem o pandeiro. E os meninos se
soltam. Os da Jahya (que, me conta a Kika, quer dizer “poder e conquista) e o
convidado especial que os acompanha naquela tarde: Davi Kaus, da banda
“Vitrine”, que manda muito. A internet começa a bombar. Pronto, está quebrado o
clima inicial.
Jorge
Amâncio lê os poemas da Sônia Porto, que nos acompanha pela internet de Porto
Alegre, onde mora. Depois, conversa comigo e descobrimos que somos ambos
cariocas e tijucanos. E ambos escritores. Quer saber como foi a minha primeira
vez. Com as palavras. Lê trechos do meu livro e me fez ler outros. Lembro como
é bom demais estar no meio de gente que gosta do que a gente gosta. Naquele
dia, é a poeta que fala. Mesmo sendo contista e cronista, caminho pela poesia
com timidez, mas com igual prazer.
Em seguida,
o poeta Alceu Brito Corrêa fala da sua trajetória na literatura. Conta
histórias de como seu pai lhe dava bons livros para ler, e que ganhou Os
Lusíadas quando ainda era garoto. Gostou. E tomou gosto, de quebra, também pela
escrita. Faz poemas de puro Concretismo. Coisa difícil. Pra quem é mesmo poeta.
Agnes Regina
nos dá notícias de que Anand Rao está na Bienal do Livro, mas queria estar ali
também, conosco. Estava. Não só porque falamos dele o tempo todo, mas porque
ele é o sarau, essa ideia doida e perfeita que começou e nunca mais vai parar,
porque cultura não tem o direito de parar.
Um cabelo
moicano (ou seria hare krishna?) aparece bem na minha frente e sorri. É o JP
França Fernandes, o JP, um mix de voz, guitarra, charme, protesto e alegria que
logo toma conta do ambiente. Com ele, Nahla Tartuce França, cantora, esposa. E
começa a rolar uma apresentação de Fábio Barros e Nahla, música e performance.
Genesis. Só esquentando para a jam session que vem em seguida, com JP, Fábio,
Nahla, ........... (o percussionista da Kika Ribeiro E Jahya), e Davi Kaus. E
acontece Rita Lee: “...nem toda feiticeira é corcunda...nem toda brasileira
é...” A internet, bombando. Pedem música de Brasília. JP canta Móveis Coloniais
de Acaju e a galera dança. Logo depois, rock. E rola delírio na provocação de
guitarra e violão entre JP e Davi Kaus. Coisa de gente muito grande. E tem mais
Kika Ribeiro E Jahya, pedindo votos para a banda poder participar da Calourada
(seis bandas serão escolhidas para tocar nos grandes palcos, no aniversário de
Brasília). É música boa na veia. No Sarau do Anand Rao.
Fôlego. Mais
uma rodada de poemas. Só que, dessa vez, os do Alceu, os meus e os de Jorge
Amâncio, que são daqueles que mexem, cutucam o comodismo. Tudo de bom. Peço ao
JP um fundo musical. Ele topa. Uma experiência que o próprio Anand Rao já faz,
juntar música e poesia. E que dá certo. E a gente começa um bate-texto com
dedilhado da guitarra acompanhando. Eu arrepio de novo e a garganta aperta.
Emoção demais na carne de todos. Dá pra ver.
Chega a hora
de vir embora. A filha que é que me arrasta de lá. Mas eu não vou embora.
Apenas saio. Carrego comigo aquele dia de puro tesão. Acho que me deixei um
pouco por lá, também. A gente leva e traz coisas daquele sarau. Coisas
importantes. Lá fora, já está escuro. Dentro, tudo é luz. Luz forte da energia
acumulada. Energia de arte, de música, de cultura. Um sentimento de que tudo
funciona quando a intenção é uma só. Lá dentro, ninguém é velho ou novo demais.
Ninguém tem cara de deboche, ou de sono, ou de indiferença. Todo o mundo se
enxerga, se escuta. E aprende. Internaliza. É uma orquestra afinada. Maestrina:
Agnes Regina. Coro: quem for da arte, da música, da literatura; quem for do
bem. É sintonia. Sinfonia. A sinfonia que Mestre Anand Rao criou para os
sábados. Amém.
Cinthia Kriemler é relações públicas, contista,
cronista, poeta, e participou do Sarau do Anand Rao no sábado, 14 de abril.
kriemler@gmail.com
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