sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O orvalho do outono

25/1/2011 - Batista de Lima - Jornal Diário do Nordeste
O orvalho do outono

Nada mais poético que a água, principalmente como metáfora da vida. E a água corrente arrasta consigo a figuração do tempo que não conseguimos reter. Por isso que os melhores poetas estiveram próximos a cursos d´água. Foram participantes de uma liturgia que só o altar da natureza consegue executar.

O rio é superfície e profundidade, dinâmica correnteza e imagem que se prende a nossa memória. Dos cursos d´água, o rio se inscreve como algo que flui, como o tempo, e algo que fica como imagem permanente, raiz e terra. É movimento e é estática, tempo e memória, superfície e profundidade, presente e passado.

É por isso que ao lermos os poemas de Barros Pinho precisamos mergulhar nas águas do rio Parnaíba. Pelo rio ele trafega do território da infância aos orvalhos do outono. Duas cores colorem seu universo poético, o azul memorial, e o verde que salta dos canaviais para a dimensão do sonho que não o abandona nunca.

Sua batalha é situar-se nesse meio caminho e instaurar a expressão do que lhe toca. O código linguístico é obsoleto para a transmissão do que lhe lateja no ser. Deram-lhe a "langue" sem medirem a potência da sua "parole". Nota-se perfeitamente uma vontade dilacerada diante das limitações do dizer.

Mesmo assim ele se põe diante do Parnaíba e vê um rio transfigurado. Uma luz se acende nas profundezas das águas e o observador da margem acende nas retinas do leitor o mistério das correntezas de mãos dadas com o tempo. Tudo flui e orvalha o outono do tecedor que com sua rede verbal tenta segurar a fluência das águas.

Onde andam as madrugadas que o poeta desperdiçou? Para ele não bastam mais as auroras com seu cheiro de parto e pescarias. O poeta está maduro e grita do alto das setenta cheias do rio que conduz: "nos meus pés / arrasto muitos caminhos".

Mesmo assim com um pouco de fadiga nos olhos ainda consegue manter as "mãos repletas / de borboletas amarelas". Essas borboletas são imagens que se transformam em sintagmas do tipo "algodão do poema", "partitura do mormaço", "sofreguidão das águas", "olimpo da palavra". Toda essa imagética transforma lágrima em palavra e o rio em frase.

O rio é uma frase enorme que não gosta da preguiça das planuras, mas tem os "olhos presos na divisa da aurora". Daí que há momentos em que rio e poeta fluem no mesmo compasso e se imbricam em uma só persona, correnteza e permanência. Por isso que a fala " se for noite / ponho lua nos olhos / se for dia / ponho sombra / no rastro", não se sabe se é o rio ou o poeta falando, ou se são os dois na mesma fala.

Essa fala consensual entre o poeta e seus símbolos trafega do convencional ao acidental para desembocar no universal. E ela começa logo pelo título da obra, "Poemas para orvalhar o outono". Como um bom livro começa com um bom título, Barros Pinho, além desse belo portal inicial ainda o projeta sobre um desenho instigante da lavra de Andifax Rios. Com essa recepção tão bem preparada, o leitor é sequestrado e cativado página a página.

É aí que a leitura se torna uma colheita de metáforas que vão enchendo nossos bornais de rios de imagens desmontadas. É como quem cata frutos debaixo de uma grande árvore ou pesca os maiores peixes de um grande rio. Ler Barros Pinho é tornar repletos os currais, os chiqueiros, os sótãos, os armários e os giraus da nossa sede de saberes. É por isso que o autor, aos setenta, rejuvenesce, pois "velho é o vento" e "a poesia é harpa da manhã" e "o coração / procura ingresso / no espetáculo".

Quanto à mensagem social que tem marcado a trajetória do poeta em todos os seus livros e na vida política, basta observar o verso "escrevo com a faca na mão / ao lado da pedra de amolar". A ternura que marca a poética e até o dia-a-dia do poeta sabe ser cortante como as palhas verdes dos seus canaviais telúricos.

Ao final da leitura desses poemas de Barros Pinho, verifica-se que mesmo orvalhando o outono, há uma ênfase em tratar o tempo como algo inexorável. Sua força corrosiva se dilui quando o poeta o transfigura entre o vento e o rio. Seu texto é o Tabor dessa transfiguração. Cantar a correnteza desses três elementos é cantar a vida, é inscrevê-la no humus que resta dessa batalha que travamos contra essa enfermidade adquirida.

Entretanto dessa tríade semiótica de sua poética é o rio o que mais representa a vida. Na sua dinâmica de sempre ir, vai levando na superfície o balseiro das imagens ribeirinhas, inclusive a do poeta, mas no seu leito, na sua estrutura profunda a vida se funda ligada a terra, esperando a luz. "Os rios se guardam / para o aviso dos relâmpagos", numa liturgia das águas. jbatista@unifor.br

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=922549

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