quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O INQUIETO SAMBA PÓS-ANTIGO DE CACÁ E TRADIÇÃO SENTIMENTAL DO POVO BRASILEIRO Por Luis Turiba


Mas pra fazer um samba com beleza
é preciso um bocado de tristeza
é preciso um bocado de tristeza
senão, não se faz um samba não”

Assim cantou o poetinha Vinícius de Moraes no seu clássico “Samba da Benção”, em parceria com Baden Powell. Saravá!!!
O verdadeiro samba é assim mesmo: não tem fórmula certa, mas tem pegada rítmica e sentimental. Deve ter sim uma pitada de lamento, uma boa dose de nostalgia, a saudade de um amor perdido e um compromisso imensurável com a busca da felicidade. Tanto na letra como na melodia. Afinal, se tristeza não tem fim, não custa clamar: “tristeza, por favor vá embora/ minha alma que chora/ está vendo o meu fim.” Daí todos cantamos juntos.
Essas breves considerações vêm à tona a propósito do último show do cantor/compositor Cacá Pereira, no Feitiço Mineiro, em meados deste janeiro, onde ele, além de encantar a plateia com sambas de sua autoria, também prestou uma homenagem ao centenário de Noel Rosa, autor de Feitiço da Vila. Ou seja: por si só já havia feitiço demais solto no ar.
Embora tenha citado dois sambistas brancos – Vinícius e Noel, além do próprio Cacá que é um típico caboclo mestiço brasileiro -, todos sabemos das origens africanas do nosso samba. Talvez por isso mesmo, o ritmo ícone da nossa cultura traga na sua essência, no seu DNA estético, aquele lamento como base melódica e a tristeza na poesia daqueles serem que foram tratados mercadorias escravas jogados em terras estranhas. Neste ponto, o samba e o blues se irmanam na saudação à ancestralidade, na saudade milenar que podemos capitar em cada nota, em cada fraseA isso costumamos chamar “samba de raiz”, ritmo que vem lá de Tia Ciata, mãe de santo da Praça XI quando o Rio começava a viver o processo de urbanização no início do século passado. Mas também vem do canto das velhas baianas do Recôncavo, feiticeiras que jamais deixara de saudar e cultivar seus orixás.
Cacá faz renascer entre nós, brasileiros do Centro-Oeste neste século XXI, este tipo de samba. Os que têm bons ouvidos reconhecem isso. Gosto de chamar seu estilo de compor e cantar de “pós-antigo”. A base está lá trás, nos sambistas ancestrais que sua mãe cantava para acalmar o menino endiabrado. Mas a pegada é atualíssima, com melodias elaboradas, embora a temática poética seja a eterna de todo bom samba: o eterno conflito de amor entre homens e mulheres e vice-e-versa.
Tanto isso é verdade é o compositor Eugênio Monteiro, parceiro de João Nogueira em “Nó na Madeira”, quebrou o protocolo interrompendo o show de Cacá no Feitiço para saudá-lo, colocando-o na linha evolutiva de Cartola, Nelson Cavaquinho e na “melhor tradição de Nogueira para Pereira”. Diante de tal comparação, Cacá verteu lágrimas como diria um antigo sambista da Velha Guarda da Portela. O público aplaudiu aturdido..
No seu último show, em meados de janeiro, Cacá estreou banda nova, com Vinícius Magalhães (violão 7 cordas), Pedro Molusco (cavaquinho), Bruno Patrício (sax), Thiago Viegas e Júnior Viegas (percussão e pandeiro). Ficou comprovado também que com um repertório autoral – exceção feitas as seis músicas de Noel, homenageado da noite-, esse brasiliense do Piauí, está cultivando um público próprio capaz de gostar e curtir um bom samba feito sem concessão aos modismos do pagode fácil. Nisso, Cacá é radical e muito consciente. É dele a conceituação:
“O Jô Soares um dia falou no seu programa em música pegadora, que é aquela que pega na alma do povo, a que cai no gosto popular. Ele citou inúmeros exemplos pois isso vale para toda a MPB. Mas a história do samba brasileiro, em especial, mostra que os sambas que são mais cantados pelo povo, os que ficam para sempre na memória afetiva do povo, são aqueles carregados de beleza poética, melódia e que traduzem sentimentos. O samba tem raízes sentimentais e o povo brasileiro é sentimental. A miscigenação que constituiu nossa gente gerou esse sentimentalismo que é algo muito especial e próprio. A minha música está dentro da tradição sentimental do samba brasileiro”, explicou ele.
Esse gosto pelo samba de raiz – ou “samba sentimental” - nos uniu em projetos e até algumas parcerias musicais. É certo que minha poesia carrega no humor, nas brincadeiras temáticas, nas aliterações gramaticais e até nas explosões de linguagens. Por isso, não condeno o samba paródia, a brincadeira da malandragem tão presente nos CD de Zeca Pagodinho. Mas temos de reconhecer que o último samba desse amado cantor que bateu na emoção do povo brasileiro, depois de “Deixa a Vida me levar”, foi “Verdade”, do baiano Nelson Rufino. Diante de tais fatos, me vejo também inebriado por esse conceito do poético sentimental onde a riqueza melódia faz renascer em todos nós uma nostalgia gostosa que não sabemos bem de onde vêm.
Portanto, o movimento do samba em Brasília, cidade que está segurando a peteca do poder central depois de Salvador e Rio de Janeiro, está diante de uma proposta estética que não é nova: cantar, curtir e fazer o samba de raiz encarnado de sentimentos e buscas das ancestralidades que fizeram desse ritmo uma espécie de pai-e-mãe da cultura brasileira.
De quebra, vale a pena lembrar a todos que a novela “Insensato Coração” que acaba de estrear no horário nobre da Globo, tem como música central “Coração em Desalinho”, uma obra-prima de Mauro Diniz e Ratinho, imortalizada nas vozes de Monarco da Portela, Zeca Pagodinho e agora em nova versão de Maria Rita.

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