O escritor brasiliense Nicolas Behr dedica “Brasilíada”, seu novo livro de poemas, aos “fracassados de Brasília”. Habita uma cidade destroçada, que se desmente e diverge de seu projeto. É cáustico: dedica o livro “aos que não acreditaram, aos que desistiram, aos que não tiveram forças nem para sonhar”. Brasília, desde o início, foi um sonho. No deserto da vigília, ela desaparece.
Behr está em guerra com o presente, que lhe parece indigno de confiança e traiçoeiro. Vê Brasília, a capital do futuro, como uma Bagdá, capital devastada onde o conflito destroça o ideal. A aflição do poeta se resume em seus primeiros versos: “Brasília foi construída para ser destruída”. A queda é o preço a ser pago pelos que buscam a perfeição. Ainda adverte seus leitores: “Se você ama Brasília, não leia esse livro”.
“Brasilíada” é o relato de uma guerra. É, ainda, a narrativa, minuciosa, de uma escavação. Cavando os entulhos do presente, como um arqueólogo cego, Behr tateia em busca da cidade mágica (a Bagdá de Sherazade?), que não existe mais. Se é que algum dia existiu. Apoia-se em frágeis pegadas e relata sua aventura com firmeza, mas pudor, ciente de que sua odisseia provoca desconforto em quem lê. Mas como fazer poesia sem incluir a perturbação?
“Impossível agradar a gregos e goianos”, ele sabe, e segue em frente. Poemas não existem para agradar, mas para perfurar. Sabe Behr que seu retorno ao mito provoca decepção. “JK voltará glorioso, coberto de asfalto,/ poeira e lama”, ele vaticina. Juscelino, o fundador, ressurgirá coberto de cinzas; encontrará a cidade perfeita destroçada pelo contemporâneo. Com ela, o poeta desaparecerá outra vez. JK é o primeiro mito. “O segundo, Renato Russo. O terceiro mito sou eu”, ele se inclui, deixando claro que também não escapa.
Behr vê Brasília como o resumo das sete grandes capitais históricas: Tebas, Luxor, Atenas, Babilônia, Persépolis, Roma e Cuzco. Busca o elo invisível que ata a capital a essas sete cidades mágicas. Para encontrá-lo, deve desmontar o mundo real. “Descontruir JK./ Reconstruir Braxília”, propõe, e o S que se converte em X assinala a busca da cidade que nunca foi. Mito inalcançável, cujo lugar foi usurpado pelo humano. Poetas — e Nicolas Behr não escapa — não sabem bem o que buscam. Soubessem, e não seriam poetas, mas cientistas. De um lado, Behr faz de seu poema uma denúncia da ilusão: “Quem pensou que Brasília seria eterna, dançou”. De outro, afasta-se das exigências da realidade, para fazer da poesia o caminho do impossível — estado primeiro, que o X (como que fixado em um documento da República), vem assinalar. Nesse segundo movimento, a capital ocupa o lugar divino. Pergunta-se, como se ajoelhasse: “Que cidade é essa/ que amo/ mais do que eu?”.
Em meio ao vazio do cerrado, peregrino que atravessa um deserto, Behr vê Brasília como uma cidade vazia também, “habitada por pessoas vazias/ que circulam por avenidas vazias”. A ausência se multiplica e o livro se torna ainda mais atordoante. Como em uma narrativa de Kafka, o poeta experimenta o horror da rotina e da repetição. “Aqui estou: expediente encerrado/ papel timbrado/ burocracia infeliz”. A Brasília oficial (e real) destrói o sonho. Teimoso como um crente, Nicolas Behr se agarra à promessa de um retorno. O poeta se torna profeta.
Mas o mito está sempre a tardar. Medita Behr que, no ano de 2060, centenário da cidade imaginária, ele já terá 102 anos. Vê-se “lúcido, mas cego, surdo e mudo”. Édipo cujos sentidos entraram todos em colapso, o poeta verá apenas porque sofre. Fará do sofrimento, lucidez. Então, o tempo rasgará os restos da cidade imaginária. E o real — como um carimbo que arquiva para sempre um processo, salvando a vida do criminoso — imporá sua versão. “Nós estaremos todos mortos/ nós estaremos todos errados”. E isso, no entanto, terá sido viver.
Estranha “Ilíada”, o poema se desenrola às avessas, servindo não como relato de uma vitória, mas como funeral. Prevendo o futuro, o poeta se angustia: “Esse livro é um elogio de Brasília?/ Ou uma crítica/ à burocracia?” Incapaz de uma resposta (se dão respostas, poetas negam a poesia), Behr persevera no vazio, e dele faz sua beleza.
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