
Behr está em guerra com o presente, que lhe parece indigno de confiança e traiçoeiro. Vê Brasília, a capital do futuro, como uma Bagdá, capital devastada onde o conflito destroça o ideal. A aflição do poeta se resume em seus primeiros versos: “Brasília foi construída para ser destruída”. A queda é o preço a ser pago pelos que buscam a perfeição. Ainda adverte seus leitores: “Se você ama Brasília, não leia esse livro”.
“Brasilíada” é o relato de uma guerra. É, ainda, a narrativa, minuciosa, de uma escavação. Cavando os entulhos do presente, como um arqueólogo cego, Behr tateia em busca da cidade mágica (a Bagdá de Sherazade?), que não existe mais. Se é que algum dia existiu. Apoia-se em frágeis pegadas e relata sua aventura com firmeza, mas pudor, ciente de que sua odisseia provoca desconforto em quem lê. Mas como fazer poesia sem incluir a perturbação?
“Impossível agradar a gregos e goianos”, ele sabe, e segue em frente. Poemas não existem para agradar, mas para perfurar. Sabe Behr que seu retorno ao mito provoca decepção. “JK voltará glorioso, coberto de asfalto,/ poeira e lama”, ele vaticina. Juscelino, o fundador, ressurgirá coberto de cinzas; encontrará a cidade perfeita destroçada pelo contemporâneo. Com ela, o poeta desaparecerá outra vez. JK é o primeiro mito. “O segundo, Renato Russo. O terceiro mito sou eu”, ele se inclui, deixando claro que também não escapa.
Behr vê Brasília como o resumo das sete grandes capitais históricas: Tebas, Luxor, Atenas, Babilônia, Persépolis, Roma e Cuzco. Busca o elo invisível que ata a capital a essas sete cidades mágicas. Para encontrá-lo, deve desmontar o mundo real. “Descontruir JK./ Reconstruir Braxília”, propõe, e o S que se converte em X assinala a busca da cidade que nunca foi. Mito inalcançável, cujo lugar foi usurpado pelo humano.

Em meio ao vazio do cerrado, peregrino que atravessa um deserto, Behr vê Brasília como uma cidade vazia também, “habitada por pessoas vazias/ que circulam por avenidas vazias”. A ausência se multiplica e o livro se torna ainda mais atordoante. Como em uma narrativa de Kafka, o poeta experimenta o horror da rotina e da repetição. “Aqui estou: expediente encerrado/ papel timbrado/ burocracia infeliz”. A Brasília oficial (e real) destrói o sonho. Teimoso como um crente, Nicolas Behr se agarra à promessa de um retorno. O poeta se torna profeta.
Mas o mito está sempre a tardar. Medita Behr que, no ano de 2060, centenário da cidade imaginária, ele já terá 102 anos. Vê-se “lúcido, mas cego, surdo e mudo”. Édipo cujos sentidos entraram todos em colapso, o poeta verá apenas porque sofre. Fará do sofrimento, lucidez. Então, o tempo rasgará os restos da cidade imaginária. E o real — como um carimbo que arquiva para sempre um processo, salvando a vida do criminoso — imporá sua versão. “Nós estaremos todos mortos/ nós estaremos todos errados”. E isso, no entanto, terá sido viver.
Estranha “Ilíada”, o poema se desenrola às avessas, servindo não como relato de uma vitória, mas como funeral. Prevendo o futuro, o poeta se angustia: “Esse livro é um elogio de Brasília?/ Ou uma crítica/ à burocracia?” Incapaz de uma resposta (se dão respostas, poetas negam a poesia), Behr persevera no vazio, e dele faz sua beleza.
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