domingo, 13 de junho de 2010

Se fôssemos patriotas como nos Estados Unidos, os jovens iam andar com camisetas com a frase ‘Noel forever, Noel lives.’” É com essa metáfora que o músico e escritor Guca Domenico mensura a importância de Noel Rosa para a música brasileira. Noel, que revolucionou o samba, em 2010 completaria 100 anos, mas morreu aos 26, vítima de tuberculose, tendo criado mais sucessos do que muito compositor que chegou à terceira idade.
Guca, autor da biografia romanceada O jovem Noel Rosa, conta que o sambista carioca teve uma história pessoal complicada. “O pai de Noel era meio maluco, megalomaníaco, estava sempre inventando alguma coisa que ia levar a um grande sucesso, mas estava sempre sem grana”, define. Uma das atividades em que o pai de Noel se envolveu foi em uma fazenda de café em Jaú, no interior de São Paulo. Enquanto isso, a família continuou no Rio de Janeiro. “Noel passava a lábia na mãe e ia para a noite. Mas ele tinha uma saúde frágil: nasceu com a ajuda de um fórceps, que lhe causou um esmagamento na mandíbula, fazendo com que ele não conseguisse abrir a boca direito, tanto que se alimentava de líquidos e comida pastosa”, relata Guca.

Com isso, o jovem Noel ganhava a chance de usar a boemia e a ironia para lidar com seus problemas e de usar seu talento como músico para ganhar a admiração das pessoas. Ao mesmo tempo, mudou o trajeto da música popular brasileira. “Noel formatou o samba urbano. O samba era muito maxixe, que é de fato o pai do samba, mas foi com Noel que ganhou as características que o distinguiram como ritmo”, analisa Guca. O escritor também defende como de Noel o mérito de trazer o ponto e vírgula para a música brasileira, apresentando uma gramática perfeita para canções populares, como o grande sucesso Com que roupa?

A ousadia musical e o estilo de compor combinaram, em Noel, com seu tom de pele branco e sua dedicação ao curso de medicina, ajudando a dar status a um ritmo que era sinônimo de contravenção. “O samba era uma coisa de fundo de quintal, porque, se o chefe de polícia descobrisse que estava rolando um samba na casa de alguém, ele entrava e prendia todo mundo. Era coisa de vagabundo. Então, tinha gente que deixava um violino e uma flauta rolando na sala para disfarçar enquanto o samba acontecia no fundo da casa”, assegura Guca, ex- integrante do grupo Língua de Trapo.

Para ele, é difícil falar da influência de Noel entre os artistas contemporâneos, pois ela é muito difundida. “O grande sucessor de Noel é Chico Buarque, mas ele influenciou desde Caetano Veloso e Maria Bethânia até Marcelo D2. Isso pode ser surpresa para algumas pessoas, porque a sonoridade é diferente. A do Noel é mais autenticamente brasileira (se é que existe isso), enquanto a do D2 tem influência do rap, de ritmos estrangeiros, mas essa ginga malandra do D2 vem do Noel”, define.




CRONISTAS DA CIDADE
Se Noel trouxe para o samba status e gramática correta, Adoniran Barbosa pode parecer seu exato oposto, não apenas pelos saborosos deslizes que se permitia na língua portuguesa, mas também porque em suas músicas tratava da periferia, das pessoas simples. A verdade é que tanto Noel quanto Adoniram foram polos geradores de um samba regionalista e irônico. Para Sérgio Rosa, integrante do conjunto Demônios da Garoa e filho de Antônio Rosa, um dos músicos que fundaram grupo em 1943, a trajetória de Adoniran é inseparável da do grupo. “Os Demônios popularizaram músicas de Adoniran, como Saudosa maloca e Samba do Arnesto, e tudo que ele fazia, trazia pra gente”, revela Sérgio.

Considerado um grande cronista da cidade de São Paulo por citar os bairros e colocar lugares reais como pano de fundo de suas músicas, Adoniran não foi apenas músico. Foi radialista, comediante, artista de circo e ator de televisão. O humor era sempre fator de sucesso em seu trabalho e a identificação com a cidade acabou por estabelecê-lo como criador de um samba considerado autenticamente paulistano em contraposição a Noel, que cantava sua amada Vila Isabel e tinha em sua produção a marca do amor pela Cidade Maravilhosa.

Sérgio conheceu pessoalmente Adoniran, que faleceu em 1982, aos 72 anos. Considerava-o uma pessoa espetacular, muito simples. Para ele, a influência do sambista como músico se mede pela extensão de seu sucesso. “Trem das onze já foi gravada em 19 línguas diferentes”, informa. Além disso, ele considera que Adoniran foi não só uma das grandes essências do samba paulista, mas também um dos responsáveis pelo sucesso do Demônios da Garoa, que, desde 1943, nunca deixou de se apresentar e está no livro dos recordes, o Guinness Book, como o grupo mais antigo da América do Sul em atividade.

André Nigri, autor do livro Adoniran – Se o senhor não tá lembrado, junto com Flávio Moura, acredita ter sido Adoniran quem inaugurou um tipo de crônica social pouco praticada na época – rendendo, inclusive, material para quem quiser estudar São Paulo entre as décadas de 1940 e 1960. “A obra de Adoniran vai além dos sambas geniais, da melodia. Ela é um retrato da transformação da cidade, que passou por um momento de volúpia da construção civil, que é mostrado em Saudosa maloca, por exemplo. Além disso, ele foi um grande retratista dos tipos”, enfatiza André. Para ele, a ironia é que grupos dedicados ao resgate da marca de Adoniran tenham surgido apenas no final da década de 1970 e começo de 1980, como os grupos Amigo Barnabé e Língua de Trapo.

Há, claro, quem discorde de André. Guca acredita que, muito além da identificação estabelecida entre Adoniran e a cidade de São Paulo, a qualidade da melodia de suas músicas faz dele um sucesso até hoje. “São músicas incríveis, que entram de leve na cabeça. Interessantes, inteligentes e instigantes”, define. Para ele, o Língua de Trapo deu continuidade à ironia escrachada de Adoniran em canções como Dina, na qual é narrada a história de uma mulher que sempre declarou seu desejo de ser enviada para o crematório depois de sua morte e acaba morrendo em um acidente de carro. Apesar do tema pesado, o humor faz com que a letra seja leve, artimanha usada por Adoniran em canções como Despejo na favela ou Tiro ao Álvaro.




TEMPERO MINEIRO
Se Noel e Adoniran representam a dualidade do Rio e de São Paulo no samba, Ataulfo Alves acrescenta o tempero mineiro à mistura. Nascido em Miraí, em 1909, Ataulfo foi leiteiro, condutor de bois, carregador de malas, menino de recados, engraxate, marceneiro e lavrador. Aos 18 anos, foi morar no Rio de Janeiro. Aos 19, tocava violão, cavaquinho e bandolim. Aos 20, começou a compor e tornou-se diretor de harmonia do Fale Quem Quiser, bloco de rua do bairro onde morava. Mas sua entrada no mundo da música só aconteceu em 1933, quando Carmen Miranda gravou Tempo perdido, de sua autoria. Autor de mais de 320 canções, são de Ataulfo sucessos interpretados por Clara Nunes e pelos grupos Quarteto em Cy e MPB 4.

Entre os epítetos pelos quais Ataulfo era conhecido estão “General do samba”, “O diplomata do samba”, “Embaixador do samba brasileiro” e também “O mais elegante sambista”. Esses títulos fazem referência ao esforço de Ataulfo para divulgar a música brasileira no exterior. Em 1961, ele e suas Pastoras participaram de uma caravana na Europa divulgando a MPB. Em 1966, mesmo com a saúde debilitada, o sambista foi para o Senegal representar o Brasil no I Festival de Arte Negra.

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Ataulfo também foi conselheiro e presidente da União Brasileira dos Compositores e diretor da Associação Defensora dos Direitos Autorais. A participação do mineiro somou força à luta para que o direito autoral fosse devidamente pago aos compositores, numa época em que o mercado fonográfico era desorganizado e os direitos autorais eram pouco respeitados.

O fim da escravidão, ocorrido em 1888, era fato relativamente recente quando Ataulfo começou sua carreira. Caprichando no visual e se apresentando sempre impecável, vestido de terno, o mineiro usava seu estilo e asseio como armas para rebater qualquer desdém que pudesse sofrer por ser negro.

Se do ponto de vista musical não era tão ousado, a eficiência de suas composições é inegável. Não há quem não conheça Ai, que saudades da Amélia, parceria com Mario Lago, que também foi sucesso dos Demônios da Garoa. Até hoje a música é um coringa no repertório de qualquer show. “Quando o pessoal desanima, eu toco Ai, que saudades da Amélia e todo mundo canta junto”, entrega Guca.




CARREIRA INTERNACIONAL
Contemporâneo de Noel, Adoniran e Ataulfo, Vadico talvez tenha sido o de carreira mais bem-sucedida. Como seu talento era maior como músico, Oswaldo Gogliano, nome real do alcunhado que marcou o samba, chegou a fazer carreira nos Estados Unidos. “Foi convidado por Vinicius de Moraes para fazer as músicas da peça Orfeu negro, mas como estava adoentado, indicou um cara novo, um tal de Tom Jobim, que ele achava muito bom”, conta Guca.

Sofisticado musicalmente, Vadico também tinha boa aceitação entre o público. Grande parceiro de composição de Noel, compôs Feitiço da Vila e Conversa de botequim.

Rafael dos Santos, professor de música da Universidade de Campinas (Unicamp), em seu artigo O feitio da inovação na década de 1930: a contribuição de Vadico para a música popular brasileira, defende que, apesar de o sambista ser conhecido como um dos principais parceiros de Noel Rosa e de sua extensa atuação como compositor, pianista e arranjador, com exceção de suas obras em parceria com Noel, poucas outras têm registros em gravação ou partitura e nem mesmo se sabe se ainda existem.

A primeira parceria de Noel e Vadico, Feitio de oração, composta em 1933, é fundamental, segundo Rafael, para entender a importância de Vadico para a música brasileira. De acordo com o professor, assim como em muitas outras composições de Vadico, Feitio de oração tem estrutura harmônica elementos do jazz, que foram associados ao maxixe e ao choro, formando uma nova maneira de tocar samba.

Já Noel, ao perceber que a estrutura da música era diferente, respondeu à altura com uma letra considerada marco do desenraizamento do samba. “Ao ouvir a composição de Vadico pela primeira vez, Noel provavelmente percebeu que, do ponto de vista melódico e harmônico, não era mais maxixe nem samba do morro, mas sim um samba romântico”, esclarece Rafael. “A transformação do samba de ritmo étnico em símbolo de brasilidade e parte da identidade nacional foi o resultado do processo começado por Vadico e Noel.”

Em 1939, Vadico foi aos Estados Unidos para se apresentar com a orquestra de Romeu Silva na Exposição Internacional de Nova York. No ano seguinte, voltou e fixou residência na Califórnia. Gravou as músicas do filme Uma noite no Rio, com Carmen Miranda, e também compôs Ioiô, a pedido da Universal Pictures, mas que não figurou na película. Acabou se tornando o pianista fixo de Carmem Miranda e, em 1943, a convite de Walt Disney, musicou Saludos, Amigos – desenho animado que apresentou o papagaio Zé Carioca como símbolo do Brasil.

Vadico acabou ficou nos Estados Unidos 15 anos, até sua morte, em 1962. Sofreu um ataque cardíaco enquanto se preparava para ensaiar com uma orquestra no estúdio da produtora de cinema Columbia.©

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