quinta-feira, 20 de junho de 2013

O GIGANTE DESPERTOU: QUO VADIS? E AGORA, JOSÉ?

 Antonio Miranda, poeta, professor titular da Universidade de Brasília

O Brasil sempre foi reconhecido como pacifico, tolerante e despolitizado. No Exterior, conhecido pelo estereotipo da combinação do futebol com o carnaval, do erotismo e exotismo de seu comportamento e a exuberância dos recursos naturais e meio-ambiente. Gilberto Freyre cunhou a imagem de uma “unidade na diversidade”, de uma sociedade de “casa grande e senzala” em que as tremendas diferenças de classe eram amenizadas pelas relações sociais afetivas. Uma vasta extensão territorial onde a língua aproximou e forjou o país mesmo antes da abertura de estradas, da conquista do interior — em que se insere o desenvolvimento tardio da Amazônia e do Centro-Oeste. Roberto da Matta encontra na sociedade brasileira, em confronto com outros povos, um comportamento ambivalente, em que somos mais liberais na rua do que dentro de casa. Vem em nossa configuração ou estereotipo a herança colonial, o patriarcalismo, a capacidade de apaziguar os conflitos, o “jeitinho” brasileiro. Numa redução simplista, partimos da colonização portuguesa, passando pela miscigenação racial oriunda da escravatura e, posteriormente, pela imigração de europeus e asiáticos, conformando uma idiossincrasia mais sincrética, um hibridismo de valores e crenças. Um fascínio pela cultura e língua francesa no nosso processo civilizatório e, nos últimos sessenta anos, a adoção — não necessariamente a eleição — da cultura norte-americana como modelo. Um país de cultura “mestiça”, não apenas pelos cruzamentos raciais, mas sobretudo pela amálgama de costumes e valores, apesar das enormes diferenças regionais, do baixo nível educacional. Apesar dos avanços mais recentes graças à escolarização universal e à ascensão social de milhões de pessoas à cidadania e a condições mais razoáveis de vida, mas sem vencer ainda as tremendas desigualdades sociais. Stefan Zwaig cunhou a legenda de ser o Brasil “o país do futuro” e Michel Sèrres derivou a sua “filosofia mestiça” inspirada no hibridismo e no nosso ecletismo.

 Como explicar os levantes de junho de 2013 em todo o país e, em escala mais reduzida, nas periferias e no interior? Reflexo da melhoria dos níveis de educação, da inclusão social, das mudanças significativas no poder aquisitivo e consequente acesso aos bens de consumo?

 A perplexidade do governo e da classe política diante das passeatas, das manifestações públicas de repúdio às práticas da corrupção e da violência, denúncia de gastos públicos sem transparência, inflação crescente. Custos de obras públicas exorbitantes, entre elas as das copas das confederações e a mundial, enquanto é flagrante a precariedade das infraestruturas: estradas, hospitais, escolas, formação de recursos humanos e segurança pública. As críticas aos partidos políticos tradicionais, o rechaço às práticas de negociação com os partidos da base de governo, o loteamento de cargos públicos, a exoneração constante de ministros e servidores públicos que logo, quase sempre, são renomeados para outras funções. Impunidade. Lentidão da justiça. A forma de governar por medidas provisórias.

 Os cientistas políticos, os jornalistas mais especializados e os economistas, durante os meses do julgamento do Mensalão, no Supremo Tribunal Federal, foram enfáticos em apontar para a enorme reserva de manobra que o governo tem para o aliciamento de pessoas carentes mediante programas assistenciais. O baixo nível de desemprego e uma elevação, ainda que discriminatória, do “índice de desenvolvimento humano” explicariam que não houve, durante o julgamento do referido Mensalão, protestos nem uma comoção nacional. Mas certamente que o processo causou um tremendo impacto na consciência das elites e das camadas mais intelectualizadas, formadoras de opinião por excelência, e que o “alheiamento” das classes mais despossuídas não significa necessariamente desconhecimento da gravidade do que estava sendo julgado.

 Por que os brasileiros, a exemplo do que era a nossa tradição, não saiu pintando as ruas, colocando bandeiras nas janelas, em unívoca e uníssona torcida por todo o país desde a abertura da Copa das Confederações? Como explicar o constrangimento das manifestações multitudinárias na inauguração do Estádio Nacional de Brasília, ameaçando o acesso dos torcedores ao jogo entre Brasil e Japão? E a vaia durante a fala da Presidente Dilma Roussef, de repercussão internacional? Por que, em vez de celebrar a primeira vitória da seleção de futebol enquanto, ao contrário das vezes anteriores — que sempre foi de carreatas e fogos de artifício — parte considerável da população saiu às ruas das principais cidades para protestar contra o aumento das passagens dos transportes públicos, questionando os altos custos das obras nos estádios, levantando as questões da precariedade dos serviços públicos de saúde e educação, numa pauta difusa, sem lideranças explícitas? Quem leu “A rebelião das massas”, de Ortega e Gasset, sabe que as manifestações incluem diferentes grupos, dos mais bem intencionados até os radicais, que atraem o lumpem, os que vivem nas ruas e os marginais sem voz e sem direitos e que, a qualquer pretexto ou falta de monitoramento, descambam inevitavelmente para os excessos pelos recalques sociais.

 Por dias seguidos, entre passeatas pacíficas, tentativas de invadir prefeituras, saqueando lojas, culminando com a “tomada” do Congresso Nacional, onde, mesmo sem invadir o prédio, os manifestantes enfrentaram a polícia e subiram as rampas e o telhado entre as cúpulas do Senado e da Câmara dos Deputados, ao lado do Palácio do Planalto, gritando palavras de ordem e exibindo cartazes com reivindicações contra os altos salários dos políticos, pedindo transporte gratuito, exigindo respeitar o direito do Ministério Publico de fazer investigações, e até questões relacionadas com os direitos dos indígenas e mais verbas para a educação. Sem aceitar o apoio de partidos políticos tradicionais, repudiando a presença de sindicatos e não admitindo a presença de políticos em suas fileiras. Sem lideranças explícitas, convocados pelas redes sociais. Tudo isso depois de manifestações exemplares — no sentido cervantino do termo — da Primavera Árabe, das insurgências na Rússia e os levantes na Turquia a pretexto de impedir a reurbanização de uma praça pública, mas que revelam repúdio ao autoritarismo crescente de um governo que começa a erodir o laicismo e o sentido plural da composição do governo. Tendo como pano de fundo os antecedentes do derramamento de informações sigilosas de governos pelo Wikileaks e as denúncias de monitoramento de arquivos privados dos meios de comunicação pelo serviço secreto do governo do Obama.

A explicação estaria na mudança de paradigmas e nas transformações dos meios de comunicação pelas tecnologias. Partimos de um modelo “de poucos para poucos”, em tempos mais remotos, quando poucos autores escreviam e eram ouvidos ou lidos por uma público muito limitado, mesmo depois do advento da tipografia. Seguiu-se um modelo “de muitos para muitos” com os avanços da educação e da pesquisa em escala mundial, sobretudo com o surgimento de meios reprográficos, da comunicação de massa, da crescente segmentação dos meios de comunicação abertos e por cabo, da imprensa alternativa e dos meios mais interativos de acesso ao conhecimento, sem menosprezar o avanço da multivocalidade, da transdisciplinaridade e outros meios de criação coletiva e compartilhando mais solidário dos acervos informacionais. Sem esquecer das tendências para um compartilhamento mais aberto mediante dispositivos como o Creative Commons e Science Commons, em favor da flexibilização dos direitos autorais, na Era Pós-moderna. Mas estamos agora em outra etapa, na Hipermodernidade, em que a hipermidiação, a mobilidade dos meios de comunicação, a atualização em tempo real dos conteúdos informacionais, a simultaneidade e ubiquidade dos acessos aos repositórios e, acima de tudo, a possibilidade de comunicação multilateral dos usuários através de redes sociais, mudaram o cenário completamente. Pari passu com o distanciamento do público com as instituições tradicionais como os partidos políticos — criando um significativo descrédito no sistema de representação política, assim como das religiões e do ensino tradicional. É o advento do modelo “de todos para todos” em que, em escala crescente, as pessoas produzem, compartilham e retransmitem textos, imagens, músicas, ou produtos híbridos no sentido da AV3- animaverbivocovisualidade que, graças à convergência tecnológica dos processos digitais e virtuais, amalgamam textos, voz, imagens e animações por processos mais criativos, graças a aplicativos de acesso generalizado.

É nesse contexto que acontecem os levantes por todo o Brasil em junho de 2013, sem uma noção clara de seus desdobramentos, com a perplexidade dos próprios insurgentes assim como das classes políticas, sindicais, da justiça e dos meios de comunicação do país. E agora, José? Quo vadis?

Brasília, 19.06.2013

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