Posted in: Baú
– 20 de julho de 2010
Nossa civilização ocidental erigiu-se sob uma herança grega tão intensa que, mesmo depois de vinte e cinco séculos sentimos a necessidade de revisitá-la para compormos uma compreensão de nós mesmos. E, como conseqüência de tal necessidade, muito se tem estudado e publicado com relação ao pensamento grego antigo. Do pouco que já pudemos ler, normalmente nos é apresentada uma concepção que, embora crítica, quase sempre nos aponta o lado favorável do legado grego à posteridade.
Em “Criação” (1981), Gore Vidal, 85, entre outros temas periféricos, apresenta-nos uma visão da cultura e da sociedade clássicas diferente daquela a que estamos acostumados. Para tanto, Vidal constrói uma personagem que nos conduzirá ao longo de toda a obra, confundindo a vida dela com os eventos políticos gregos, e com o diferencial de que nosso anfitrião é um persa e crítico feroz de tudo que seja helênico. Seu nome é Ciro Espítama e, como primeiro fator interessante, Vidal o introduz no romance como neto de Zoroastro, o profeta persa que vivera no século VII a.C., também conhecido por Zaratustra. Tal parentesco, dentro da trama, irá render-lhe acesso à corte persa, possibilitando o convívio com os quatro grandes reis: quando criança, conheceu Ciro e suas histórias sobre a expansão do Império; em sua juventude, serviu e admirou Dário; quando adolescente e jovem adulto, desfrutou da amizade de Xerxes; já na velhice, representou Artaxerxes junto aos atenienses, sendo seu embaixador.
O autor utiliza de outro laço de sangue para construir a narrativa e nos transporta para o século V a.C.: Ciro Espítama narra a história de sua vida, que resulta no próprio livro, a um sobrinho que tinha por conta de sua ascendência materna grega, sendo este ninguém menos que Demócrito de Abdera (460 – 370 a.C.), o filósofo pré-socrático entusiasta da teoria atômica. Após ouvir por mais de seis horas o discurso de “[...] um pretenso historiador [...]” chamado Heródoto de Halicarnasso (485? – 420 a.C) sobre o conflito “[...] a que os gregos costumam chamar de ‘Guerras Persas’ [...]”, Ciro, já velho e cego e, sobretudo, irritado pela versão que acabara de ouvir, inicia ao seu sobrinho, que atentamente toma nota, o relato da faceta persa dos acontecimentos aos quais chamou de “[...] as guerras gregas [...]”. (p. 15). E essa será a atividade construtora da leitura que nos é oferecida pelo romance: o sobrinho Demócrito anotando as memórias de um persa que, invariavelmente, afronta a versão grega sobre fatos históricos dos quais participou ou pode presenciar.
Além de podermos apreciar, pela versão oriental, a história político-militar que opôs gregos a persas, o tema condutor da obra e, consequentemente, da vida de Ciro Espítama é o desejo do protagonista de conhecer as hipóteses dadas por diversas culturas sobre a criação. Divulgador do pensamento monoteísta do Sábio Senhor zoroastriano, Ciro era “[...] um crente, claro. Mas não [...] um fanático [...]”, e sendo possuidor de mente aberta ao que lhe fosse externo, ele percorre uma boa parte do Oriente antigo a serviço dos reis persas, absorvendo, entre o trabalho de promover o comércio com os povos locais, a cultura que se lhe fosse apresentada pelas pessoas que ia conhecendo. (Cf. p. 56). Assim, Vidal, por meio de seu personagem principal, faz-nos conhecer os princípios básicos do Hinduísmo, quando da passagem de Ciro pelos reinos independentes que hoje compõem a Índia. De forma análoga, o autor nos apresenta as filosofias de vida budista e taoísta, ao colocar o neto de Zoroastro em contato com os povos do Cathai, atual China. Interessante, também, é ler as linhas que descrevem o encontro, e o relacionamento que se sucede a ele, entre Ciro e o mestre Confúcio (551 a.C – 479 a.C), além dos fragmentos de ideias de outros pensadores relevantes da época.
Em determinado momento da narrativa, abordando o assunto da criação, Demócrito chega a perguntar ao seu tio “[...] qual das teorias foi a mais curiosa [...]” por ele ouvida. Como resposta, Ciro afirma-lhe uma que dizia “[...] que nunca houve criação, que nós não existimos, que tudo isto é um sonho [...]”, sendo o sonhador “[...] aquele que desperta e lembra [...]”. (p. 212)
O livro mostra-nos, também, como um olhar externo a uma dada cultura pode desvelar a arte da manutenção de privilégios tidos como condição natural, por quem nela está imerso, como nos parágrafos em que o jovem protagonista, na companhia do então príncipe Xerxes, visita os templos da Babilônia, que à época era uma satrapia do Império, e desmascara a prática dos sacerdotes que, ao se fazerem passar por encarnações de deuses em rituais ditos sagrados, aproveitavam para desvirginar jovens nos templos em honra a estes, segundo Vidal. Xerxes, acompanhado por Ciro, curioso por se inteirar da cultura local, mas mantendo o olhar crítico do estrangeiro, afirma ao administrador do templo de Bel-Marduk, em meio aos olhares perplexos dos guardiões, que naquela noite iria “[...] realizar essa tarefa por um de seus sacerdotes [...]”. Quando o administrador lhe nega o direito dizendo que ele não era um sacerdote, que somente por um sacerdote o deus poderia se fazer presente, o príncipe persa afirma que “[...] posso fazer de conta que sou Bel-Marduk tão bem quanto qualquer sacerdote [...]” e que, ao se considerar que ele era o herdeiro do reino, o costume facultaria uma exceção. (Cf. p. 137). Evidenciam-se nesta passagem, a força dos costumes, mas, também, a sua flexibilidade perante os interesses do poder político ao qual servem.
Aproveitando-se da grande extensão territorial na qual se constituía o Império Persa no século V a.C., e, por conseqüência, da diversidade cultural que ele mantinha sobre seu julgo, Gore Vidal nos apresenta um pouco dos costumes dos vários povos que deviam obediência aos reis persas. Ao exemplo da personagem principal, que compara tudo o que lhe seja novo a sua crença interior, Criação nos inspira à prática deste olhar crítico, sugerindo-nos que tenhamos a nós mesmos por objeto primeiro desta análise singular. Visitar as quase oitocentas páginas que compõem a obra, buscando a cada instante distinguir os fatos históricos dos excessos poéticos presentes na narrativa é um exercício tão intelectualmente profícuo quanto prazeroso.
Luciano Alberto Ventura
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