domingo, 7 de novembro de 2010

Para Miquéias Paz, evento não é política cultural


José Carlos Vieira
Sérgio Maggio
Publicação: 07/11/2010 08:00

A mímica entrou na sua vida quando ainda era jovem e participava do Grupo Retalhos, berço de grandes artistas da cidade. Aventurou-se como deputado distrital, se desencantou com o "jogo da política", mas hoje tira tudo de letra, não a letra falada, mas a do corpo. Miquéias Paz é um dos patrimônios culturais da cidade e gosta de uma boa prosa. Nesta conversa com o Correio, ele destaca suas origens, a força da arte para mudanças sociais e acha que uma Secretaria de Cultura não é lugar apenas de produtores, que pensam no imediatismo. Para o mímico, é necessário pensar a cultura a longo prazo, como transformadora da cidade.

Evento não é política cultural
Quando e por que você decidiu ser mímico? E quais foram seus mestres?
Nos anos 1980, eu estudava em Taguatinga e fazia parte do Grupo Retalhos, que tinha garotos como Natinho, Nilson, Zé Regino, Chico Simões. Nessa época a gente foi convidado a participar de um evento em Paracatu (MG) e tivemos de fazer uns trabalhos de rua. Aí eu criei uma coisa mais ou menos ligada à mímica. Fiz uma maquiagem branca, usei umas roupas extravagantes e saí pela rua… brinquei, brinquei, horas a fio. Era uma coisa meio boneco, meio robô e, depois das apresentações, uma garotinha bem pequenininha fez a seguinte pergunta para uma integrante do grupo: “Quando vocês voltam para Brasília, vocês guardam ele inteiro ou vocês desmontam?” Isso foi mágico pra mim. Nessa época, eu também fazia magistério na Escola Normal de Taguatinga e havia concursos de teatro lá. Entrei com essa figura que estava pouco a pouco virando um personagem. Acho que foi aí que encontrei meu caminho. Mas antes disso, via no Fantástico, aos domingos, esquetes de Juarez Machado, percebo agora que isso também me influenciou um pouco. Depois disso, vieram pessoas como o Luiz Mendonça, do Endança, a galera mais corporal de Brasília, e fiz alguns cursos com uns alemães que deram oficinas na cidade.

E depois?
Daí criei um espetáculo e fui para o Festival de São José do Rio Preto (SP), em 1986. Nesse festival, entre as várias oficinas oferecidas, tinha uma com Luiz Otávio Burnier, que era o grande mestre dos clowns, do movimento. Depois da oficina eu disse: é isso que quero fazer. E como eu era atleta, corria 5 mil metros e 3,5 mil metros, percebi que meu vigor ajudaria a mímica. Daí pra frente foi tudo divertido.

Praticamente, só você faz mímica no DF. Por quê?
A mímica ainda é tida como uma linguagem “sub”, mesmo sendo uma linguagem fundamental para qualquer ator. As pessoas nem sempre conseguem perceber na mímica toda a dramaturgia que ela oferece e existem poucos dramaturgos especializados na linguagem corporal. A mímica possui uma linguagem visceral, principalmente quando ela não é tratada como a arte do exibicionismo (como aqueles sombras que aparecem na TV), um dos problemas que a mímica tem. Tem gente que às vezes fica mais preocupado com o movimento técnico do que com o que você faz desse movimento, é como dançar, ou simplesmente repetir coreografias, e dançar com alma, duas coisas distintas. Temos o exemplo de Étienne Decroux (1898-1991, grande ator e mímico francês). Ele encarava o movimento do corpo como a essência do ser humano, tipo “eu não preciso do verbo para me comunicar, passar ideias”. Em Brasília, convivi com Pierre Weil (professor e escritor francês autor do livro O corpo fala, entre outros). Em sua obra, ele destaca a necessidade de ser verdadeiro com o seu corpo, porque a linguagem do corpo vem em primeiro lugar.

A classe teatral no DF é companheira ou, em sua maioria, são pavões diante do espelho?
Na grande maioria são companheiros, as pessoas se amam, se respeitam, como foi emocionante a reedição do Encontro Cabeças. Um monte de gente com os olhos cheios de água, muitas fotos, a vovozada a todo vapor. Como disseram na época “projeto Cabeças brancas” (risos). Mas é claro que existem os pavões, que elitizaram o processo, que fazem do Plano Piloto sua única referência de trabalho, que não querem visitar cidades-satélites, mesmo vindo delas. É uma relação individualista da arte, esquecem que ela é exatamente o contrário disso.

O que você acha de gestores culturais
que pagam fortuna para artistas de fora participarem de uma festa na Esplanada, em vez de apostar nos artistas locais?
Esse é o grande mal da cidade. E aí a gente tem que dar a mão à palmatória, porque ações como essa não têm cor política ou ideológica. Cansamos de ver isso em vários governos, enquanto perdemos a chance de fazer a diferença. Às vezes, o gestor cultural que está promovendo um evento de grande repercussão não pensa no todo do processo, mas só no evento e no seu retorno imediato. Pouco importa o que vai ficar para as pessoas, os cidadãos. Mas ele sabe o que vai ficar para ele ou o grupo de pessoas que ele representa. Eles poderão até dizer: “Ah, durante o tempo que estivemos lá, fizemos shows para tantos milhões de pessoas”. Mas qual foi o legado que eles deixaram para a população? Não estou dizendo que não se pode trazer os figurões da nossa cultura, não podemos virar uma vila, mas que eles possam interagir com a nossa comunidade e seus artistas. A gente tem um grande desafio agora, com o novo governo. Temos a mania de colocar produtor para ser secretário de Cultura. Aí esse produtor vai pela lógica do produto, do imediatismo… A gente corre um risco de, por maior que seja o efeito pirotécnico, criar uma “produtora governamental”. Secretaria de Cultura não faz evento, faz política cultural.

E qual é o papel da secretaria?
É desenvolver ações, preparar situações para que as pessoas continuem criando e desenvolvendo bens culturais. Temos uma chance boa em Brasília hoje. Tivemos experiências no passado que não vingaram ou só vingaram para alguns poucos, que batem a mão no peito e dizem que fizeram eventos para multidões. Eu e muitos artistas nascemos de um projeto (o Plateia, nos anos 1980) de formação de “fazedores de cultura”, tínhamos o dever contratual de ir até o público, nos apresentar para essa plateia, ouvir dessas pessoas suas impressões, questionamentos. Nessa época, fiz mais de 360 apresentações e, ao fim de cada uma delas, ficava uma hora ouvindo o público e suas críticas. Muitos dos meus contemporâneos também saíram desse projeto.

Como foi sua experiência como deputado distrital (1995 a 1998) e o convívio de um artista com políticos profissionais (muitos deles corruptos ou mais interessados em enriquecer seus próprios patrimônios)?
Quando entrei na Câmara Legislativa, eu era um cidadão comum, sem ligação direta com sindicatos, entidades de classe e não era um político profissional. Recebi belas rasteiras, principalmente dos “companheiros”, porque dos adversários nunca recebi rasteira, ironicamente. Tínhamos enfrentamentos políticos e tudo era sempre respeitoso. Mas muitas pessoas que se arvoravam como aliados, companheiros, me davam uma banda e depois diziam: “Isso é do jogo”. E se você não entrar nesse jogo está fora. E a sociedade vai percebendo que é assim mesmo, e vai se distanciando, se conformando. Mas, na realidade, não é.

O governador eleito Agnelo Queiroz era deputado federal pelo PC do B na mesma legislatura em que você era distrital. Você vê preocupação cultural nos discursos do atual petista?
Ele tem essa preocupação. Mas a gente não pode esquecer que, tanto ele como eu, éramos do PC do B. Vivenciei o primeiro momento dessa ruptura com o partido, não porque eu não acreditasse no PC do B, mas porque não pertencia à raiz do partido a discussão cultural como elemento de transformação da sociedade. Era um partido que foi criado e forjado na luta de classes, na resistência política, na guerrilha… e essa coisa do prazer como transformação não era patrimônio do partido. Tanto que vivi algumas dificuldades na época. Não conseguia ser artista e parlamentar exatamente porque a legenda não entendia isso como importante. Agnelo vem desse mesmo histórico. Mas creio que ele estará aberto a receber as pessoas que tenham a capacidade de aglutinação em torno da discussão cultural. Mesmo que ele não tenha vivido isso, confio na sensibilidade dele para acatar o pensamento cultural como um dos pilares da transformação de nossa cidade. Não acredito numa cidade que não tenha a cultura como referencial.

Qual é o seu conselho para Agnelo?
Que ele procurasse, nesse momento, na questão cultural, avaliar e chamar para essa composição um conjunto de pessoas que estejam preocupadas com o “fazer” cultural e não com o evento cultural, porque realizar eventos qualquer um faz, encher uma praça de gente é a coisa mais simples do mundo. Dê R$ 15 mil, que qualquer produtor lota uma praça com milhares de pessoas. Agora, transformar e formar uma única pessoa é a coisa mais difícil da Terra, mas valorosa. E isso demanda sensibilidade. Quando você vê um pichador, você precisa entender que ele precisa de identidade. Ele está fazendo isso como um grito: “Olha eu aqui! Eu quero sobreviver!” E essa sociedade massificadora não dá espaço para esse jovem. Por isso ele grita: “Picho, logo existo!” É a compreensão desse desabafo “poético” que temos de compreender. Posso até criticar o ato de pichar, mas não o seu cerne. E assim trazer esse pichador para outra história. Às vezes, não precisa nem ter um monte de gente na praça, como um manada, mas um monte de gente pensando, questionando, criando.

Há quanto tempo você é o mestre de cerimônias da Quinta Cultural do açougue T-Bone? Conte um pouco de projeto e sua parceria com Luiz Amorim...
É uma das coisas mais prazerosas que faço em minha vida. A minha admiração pelo Luiz é fantástica. Ele é uma Secretaria de Cultura ambulante (risos). É um cara que não abre mão de seu açougue, se você chegar lá de manhã, ele está no balcão de jaleco, cortando bifes… Ele não pavoneou em nenhum momento e é um dos caras mais importantes da cultura do país. Toda hora, tem gente de várias regiões do Brasil e do exterior para entrevistá-lo. Estamos juntos no Quinta Cultural há uns seis anos. O T-Bone é único no mundo.

Na cidade, proliferam grupos de comédia. O que você acha
desse fenômeno?
Há muita gente talentosa, competente, mas também existem os modistas. Quem é bom vai ficar. Os outros vão continuar fazendo piada de preto, de homossexuais, de pobres, de prostitutas… Vão ficar fazendo o que eu chamo de cócegas cênicas. Se te fizerem cócegas você vai rir. Mesmo sem ter vontade, será obrigado. Muitos estão usando o artifício das cócegas para fazer rir, esse é o grande perigo, de andar na linha fácil, a linha do preconceito. Uma coisa é eu mexer com sua inteligência, trazer você comigo e te fazer rir, outra é eu cutucar suas costelas pra você rir.

Se você fosse secretário da Cultura, colocaria gente mais ligada a partidos políticos ou a gestores preocupados basicamente com a cultura local?
Eu colocaria pessoas comprometidas com o meu projeto. Há pessoas competentes, mas sem nenhum compromisso com o que você pensa e quer para a cidade. “Sou tão competente que sei até onde sabotar seu projeto.” Por isso, as pessoas precisam ter competência, mas que tenham compromisso com o novo. Caso contrário, elas vão destruir qualquer possibilidade de avanço. Porque os interesses delas são outros. Esse tipo de gente vai ficar repetindo fórmulas. Mudar incomoda muita gente. Existem também aqueles que não têm muita competência, mas possuem a compreensão de que precisam fazer o melhor para que o projeto dê certo. Para se compor uma secretaria, a primeira pergunta que deveria ser feita é a seguinte: suas mangas da camisa estão arriadas, não me interessa. Meu amigo, o que a gente precisa aqui é de gente com as mangas levantadas, porque temos muito que trabalhar nessa história.

Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/

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