segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Terapoética, livro de Alessandro Uccello
Uccello toca a vida com palavras
Alessandro Uccello é um caso de resistência explícita, teimosia evidente, flor insistentemente brotada de seus atuais abismos, que me faz perguntar: quem de nós, à beira de tantas limitações – neurais, musculares e físicas – se preservaria combatente, tendo como instrumento e bandeira a poesia? É ela a vela, é ela a proa.
Tenho interesse em vos situar nos bastidores, nos cenários do nascedouro deste novo livro do Uccello, não para que vos apiedeis dele e do que nele avança e cujos mistérios a medicina ainda se esforça para decifrar. Não! Estou contextualizando a vida e a lida deste valente poeta que, mesmo golpeado pelas garras da esclerose lateral amiotrófica, faz brotar o “Terapoética – como transformar problemas em poemas”, porque aí todos vós compreendereis melhor o título do livro.
Inteligente, amoroso, puto, divertido, sem autopiedades mas realista e sonhador, outra vez Alessandro Uccello nos brinda com sua coletânea de filosóficas e cotidianas observações masculinas. Estão aqui os olhos de um homem inteiro, com o seu tesão, seu raio curioso, moderno e paterno de observação, seu coração luminoso digitando sem parar, teclando, por cardíacos batimentos, a construir uma poesia que todo mundo gosta de provar: jovens, maduros, homens e mulheres; todo mundo quer Uccello recitar.
Não é por acaso que no trabalho que fizemos, eu e minha equipe de professores da Escola Lucinda de Poesia Viva, o pessoal da Casa Poema, numa comunidade vulnerável de S. Pedro 1, no antigo lixão da cidade de Vitória, no Espírito Santo, a poesia deste poeta danado tenha feito tanto efeito e sucesso. Foi muito emocionante ver escolherem, entre Mário Quintana, Drummond, Manoel de Barros e outros bambas, os poemas tão claros do Uccello. Como pode um homem, habitante da capital federal, agrônomo, servidor público, pai de família e poeta, ser a voz de um menino lá dessas impossibilidades de um outro Brasil? Dar voz a ele? Ser por ele escolhido para em seu nome discursar? : “Deus Eu - Andei colhendo as flores / que a vida deu para mim / mas nunca fiz jardim / Venho comendo as frutas / à beira do pomar / mas nada de plantar / Tenho amado as mulheres que me querem / e aceitado os amores que me vêm / quando elas partem, não me ferem / se elas morrem, não me têm / Serei um dia agente de mim mesmo / Deus Eu, dono do próprio destino? / Ou passarei a vida amando a esmo / vivendo só de amores inquilinos? ”. O impressionante é que o refrão “Deus eu” virou uma vinheta, um rap arrepiante que a turma toda afirmava junto com o dizedor. Vale esclarecer que este poema que citei pertence ao seu trabalho anterior, “Eu com verso”.
Então é assim: a poesia, forma milenar de preciosíssima autoajuda, faz um serviço, um refinamento sem nome, sem medida para qualquer lado, dentro do coração do ser humano. Basta que ela encontre uma porta para entrar. A poesia prolongou a vida de Fernando Pessoa. Ainda que ele nos tenha deixado cedo, aos 47, duvido que sem a poesia tivesse até ali chegado. Eu mesma, talvez fosse uma pessoa perdida, se de poesia não tivesse sido cedo medicada.
Mergulhando nesta obra de Alessandro Uccello, vejo sua coragem, provo de sua valentia, admiro seu sofisticado jeito de falar, mesmo que paralisado pela filha da puta da esclerose que atingiu este homem de ouro, que pegou o cara errado, considerando que tanta gente existe só para produzir guerras e outras aberrações. Que outra alma humana, nestas adversas condições, se manteria assim tão viva? Caminhante, apesar da atrofia? Realizadora, apesar da limitação neuromuscular? Faladora, apesar da impossibilidade de pronunciar palavras?
Mesmo angustiado, em versos como “de nada me adiantaram alimentação saudável / esporte com frequência / casamento estável / ética amor e paciência / A Kriptonita está dentro de mim” ou em “Renato Russo morreu aos trinta e seis / Ayrton Senna morreu aos trinta e quatro / Jesus Cristo morreu aos trinta e três / Eu? Sou o mais morto dos quatro”; mesmo triste muitas vezes, vendo sua bela e querida Sonia, amada, dedicada e valente companheira, cujo coração de quase viuvez ele avista com sua visão de raio X, mesmo assim seu livro é de altíssimo astral e a leitura destes versos nos fortalece e diverte, dando-nos uma dimensão concreta da finitude.
O poeta, corajoso que é, nos oferece seu natural bom humor e irreverente lirismo, mesmo estando com uma bomba dentro de si (bomba que todos trazemos, mas que, no seu caso, ganha em terror por conta das ignorâncias que a ciência tem desta enfermidade veloz e daninha). Alessandro não desperdiça as alegrias vividas, não as despotencializa; ao contrário, com sua sensibilidade, estende a fértil memória dos dias felizes como águas do passado movendo os moinhos de agora. Por meio de sua verve poética, o autor nos atinge, iguais mortais, com uma saúde literária indiscutível, toca numa certa eternidade, visto que o que ele fala vale para todos que estamos sempre às portas da morte, moribundos ou não, quem saberá? Ainda assim, ele cria novos futuros para si e para nós, seus privilegiados leitores.
É com este coquetel de palavras diárias que Alessandro Uccello vem driblando as intempéries de sua vida presente, mandando ver na veia poética como nunca. E o remédio que era só dele, agora está, com este “Terapoética”, disponível a todos, ajudando-nos a transformar nossos próprios problemas em poemas ou a diluí-los através de seus versos.
Você tem razão, Uccello, meu querido: “tudo é relativo pra quem está vivo”. E, enquanto a ciência não realiza seu oficio por meio das células-tronco, a poesia vai produzindo seus milagres.
Elisa Lucinda, primeiro de novembro, primavera bela e chuvosa de 2009.
Serviço:
Sarau de lançamento do livro de poesias - Terapoética.
Data: 13 de dezembro (domingo)
Horário: 18 h
Local: Restaurante El Paso Texas, no Terraço Shopping.
http://eucomverso.blogspot.com/
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