A duradoura poesia de José Décio Filho, o insone “São Francisco agnóstico” de Goiás
Depois de 35 anos desde a publicação da 2ª edição de “Poemas e Elegias”, a Editora Caminhos relança o título e reacende o debate sobre o poeta goiano
Adalberto de Queiroz
Especial para o Jornal Opção
A poesia de José Décio Filho (1918-1976) ganha ainda maior relevância. com o lançamento recente da 3ª edição do único volume de poemas deixados pelo poeta goiano, agora acrescido de “poemas recolhidos”. A inicia.tiva da Editora Caminhos é merecedora do aplauso dos amantes da boa poesia. De fato, transcorridos 35 anos desde a publicação da 2ª edição de “Poemas e Elegias”, era mais do que hora de corrigir uma grave falha de nossa memória literária e recolocar em circulação esta poesia que continua tão natural e atual.
O pensador francês Gaston Bachelard, em sua “Poética do Espaço”, afirma ser o poeta uma espécie de “ser novo” que, nesta condição, passa a ser um homem feliz na palavra. No entanto, adverte o filósofo: “Este ser é feliz na palavra e infeliz no fato”. Tomada como premissa a afirmação de Bachelard e, mesmo correndo o risco de cair no “arraigado psicologismo” –– que consiste em passar da análise puramente centrada no “estudo ontológico da imagem” e seguir por outras sendas ––, eis aqui seguindo o risco desejado, ousado até, uma análise da obra de José Décio com um olho focado na imagem poética e outro no duplo ser da equação “feliz-e-infeliz”.
Enveredando por essa tortuosa linha do estudo, como uma tentativa de entendimento (afinal, é este o objetivo do ensaio), garimpo na poesia de José Décio “os sofrimentos secretos do poeta”, quase 40 anos depois de sua morte e 35 da publicação de seu único livro, o recém-reeditado “Poemas e Elegias”.
“Feliz na palavra. Infeliz no fato”
A expressão-síntese do pensador francês anda comigo, como que demarcando o território poético de onde retiro essas linhas sobre a poesia de José Décio. Martela a frase, de fato em minha mente, desafiando-me como a todo aquele leitor que não tendo convivido com o poeta e apenas olhando para sua obra possa encontrar, nas imagens poéticas de sua poesia, as evidência.s objetivas de que a infelicidade bateu à porta do poeta, enquanto a poesia lhe batera na aorta, latejante e eficazmente capaz de produzir imagens duradouras, eternas.
Um amigo que com o poeta conviveu, Oscar Sabino, disse que José Décio foi homem que viveu “tormentosa existência.”. Outro de seus amigos, Haroldo de Britto Guimarães, quando nos dá notícia. da morte do poeta, acentua com pesar que, “tendo morrido aos 58 anos de idade, José Décio teve, nos seus últimos tempos de vida, diversos problemas de saúde que minaram sua extraordinária resistência. física”.
Não apenas os problemas físicos, senão também os espirituais, decorrentes da inserção do poeta na vida do país, sua inadequação aos diversos empregos e a frustração com quase tudo da vida prática, deixaram o poeta Zé Décio (nome carinhoso usado por amigos e familiares) diante daquele dilema do homem sob “a hostilidade da sociedade” e vítima da conjuntura e da situação política.
Declarado comunista, o poeta José Décio lutou contra a ditadura Vargas e envolveu-se em embates com a polícia., tendo sido vítima de agressão em 1946, em Goiânia, de tal forma que o fato repercutiu até no Rio de Janeiro. Esse fato parece tê-lo marcado profundamente e aprofundado a depressão moral do poeta.
Mas o mal maior foi mesmo a esquizofrenia e, como consequência. ou causa, o terrível mal da insônia. As consequência.s maléficas da prisão a que foi submetido, além de outros males físicos, “não conseguiram, porém, afogar sua imensa poesia”, como escreveu o amigo Britto, e o levou a reinventar o gênero elegia, como a que se segue:
Elegia feita no Cárcere (III)
Eu conheci a noite.
no segredo de todos os seus tormentos.
Vi também as auroras
vestidas de orvalhos.
Os animais – entes meus irmãos –
me contaram os mistérios
de minha mãe, a terra.
Os peixes estão dormindo
no seio escuro das águas.
Os pássaros estão cantando
para acalentar minha tristeza
que é o peso do mundo.
Do seio profundo do sol
busquei para meus olhos
essa luz inextinguível.
Fruí teus beijos
e de tantas outras
que nem sei quem o amor
há de me trazer
para o meu eterno consolo.
Não estou cansado,
mas os homens que tanto amei
me algemaram à solidão.
Vou encontrar a mim mesmo
no fundo da minha origem.
Lúcido, sereno e humilde,
eu voltarei um dia.
O poeta José Décio é situado no cenário da poesia feita em Goiás como um antecipador. O então jovem crítico Gilberto Mendonça Teles –– mesmo tendo na vida prática suas rugas e disputas pessoais com o poeta (como pela direção da UBE-GO) –– credita ao poeta analisado em “A Poesia em Goiás” o seguinte elogio:
A sua obra poética é a mais perfeitamente coesa e homogênea em Goiás, constituindo-se numa peça inteiriça os vários poemas que compõem o livro “Poemas e Elegias”. E de tal maneira esses poemas se completam, se identificam nas suas estruturas e vivência.s, que os sentimos harmonizados numa única mensagem, altamente humana, marcada, entretanto, por um vínculo profundo de tristeza e intensa amargura pessoal.
Este vínculo profundo de tristeza e intensa amargura pessoal que o jovem crítico já enxergava na poesia de José Décio tem, segundo Sabino, “alguma afinidade com a doutrina existencia.lista de Kierkegaard”. Esse existencia.lismo do poeta tem uma marca de desespero, doença, morte, salvação e, mesmo sendo um agnóstico, haverá o leitor de encontrar, como Sabino, dados desse existencia.lismo em José Décio.
Em “Áspera Elegia”, há pistas desta dimensão existencia.lista que Sabino viu ligada à estrutura da obra (sem desligá-la dos preceitos de Tzeván Todorov do juízo sobre a obra de arte); nem tampouco de isolá-la do sujeito que a criou (o sujeito que articula o discurso –– o poeta). Essa advertência. de Sabino faz crer ao leitor atento que se “o valor da obra deve ser o da sua estrutura”, por outra parte o permanente frescor da permanência. da obra e sua sobrevida é sua capacidade de diálogo com o leitor, para além do aspecto sépia de sua mera estrutura:
–– Tenham paciência. comigo!
(quero gritar às vezes).
Não me transformem de súbito
num escoadouro tormentoso
de angústia e de ternura.
Aonde levarei essa música,
essa dor e surda alegria
ou essa dura tristeza?
E o poeta-profeta Kierkergaardiano parece ameaçar o leitor, como um poeta judeu, alguns versos adiante na mesma “áspera” elegia numa linguagem “bíblica” como a dos profetas judaicos:
Mas vos prometo, no entanto,
que não dormireis quietos
nestas noites aflitas:
irei pelas ruas tranquilas
das vossas almas mofadas,
semeando o vento do fogo
para crestar vossas banhas
e acelerar vossos pulsos
exauridos pelo tédio.
O poeta noturno goiano, insone, cochicha em nossa vigília: “não durmo, não dormes –– em paz –– ao menos”, se o mundo, este áspero e bruto e doloroso artífice da antipoesia, mantiver sua mão de exclusão permanente sobre a visão poética da vida e possa ter alguma vitória sobre a arte.
Depois, ao me sentir exausto,
aguardarei em silêncio a madrugada,
para chorar sobre sua pureza
todo o velho desespero.
O desespero é derivado de crises de depressão do poeta. A depressão e outros males menores do poeta o faziam ausente do convívio socia.l por longos períodos. A humanidade entrevista por suas tristezas, seus destinos, no entanto, se não abandonam o poeta são o que o impulsionam a criar intensa poesia, resistente ao tempo, duradoura com esta amostra em “Grave Elegia”:
Quando me acho triste,
(e isto acontece muito)
Gosto de sair pelas ruas
Qual um homem sem fichas,
Vagamente deslambrado
De todos os compromissos.
(…)
É um conforto sentir
Que nunca me agradaria
Ser general, estadista, chefe,
Ou diretor das ondas hertzianas.
Simplesmente quero ser um homem,
Pois a vida é muito séria.
A dita “seriedade da vida” era o fator que inabilitava o poeta para as tarefas mais comezinhas do dia-a-dia e o que o levou a ser redator, funcionário público não permanente e até diretor de zoológico; o que se não lhe trouxe o sonho do conforto material, nem a realização de ter seu pedacinho de terra, criou em suas memórias uma fraternidade com os bichos que dá ao noturno goiano uma aura de São Francisco agnóstico.
Epitáfio de um Lobo
Ó lobo, companheiro de solitude!
irmão de São Francisco.
Também meu irmão das selvas,
portador de estranhas gentilezas.
Trouxeste-me o sabor dos campos,
as distância.s dos gerais imensos,
o cheiro da terra virgem
dos brejos de buritis perdidos,
o canto nostálgico da graúna
nos pantanais de minha terra.
De novo, recorro ao amigo Britto que nos reporta que “uma vez, pescando, notamos que o poeta tinha há muito tempo o anzol dentro d’água, sem que qualquer peixe o beliscasse. Sugerimos-lhe que botasse outra isca, pois aquela já devia ter sido comida, mas, com um riso irônico, José Décio explicou: ‘Eu sei disso, mas não estou querendo pescar nada. Eu desejo apenas fazer parte da natureza. Sento aqui e em pouco tempo sou como um tronco de árvore ou como essas águas que passam’” (Notícia.s de José Décio Filho, Poemas e Elegias, 2ª ed.).
E um episódio assim que se transforma naquele magistral trecho do poema “Grave Elegia”, já citado:
Enquanto os pescadores atentos
colhem peixe das águas,
estou pescando mistérios
para meu repasto.
Ou ainda o São Francisco agnóstico que coberto de um humanismo profundo é capaz de nos levar de pronto da “ternura espinhosa e tirânica” do lobo à pequena obra-prima de tradução da solidão do poeta; poema este, por vez mostrado primeiramente a uma sobrinha, Cláudia Falluh Balduíno, quando tinha seus 14 anos; hoje, Cláudia é docente na UnB.
À guisa de inconclusão, fecho o ensaio com este trecho de Sabino:
“A poesia parecia. a ele, José Décio, como também pareceu a Rainer Maria Rilke (o canto é a existência.) um processo da existência. em ação e, por isso, distante do pensamento participante… Para ele, como para Rilke, a poesia era uma escolha de destino exigente dos maiores sacrifícios”.
Entre o dia e as noites insones, entre o delírio e a razão
O leitor amante da poesia lerá em “Poemas e Elegias” a grande e a reduzida poesia. Reduzida porque em um só volume, mas ainda assim potente, capaz de impacto em pequena extensão; e grande, apesar de sabermos e conhecermos do autor apenas este volume recém-relançado.
O respeitável crítico Álvaro Lins deixou numa página inesquecível o que pode ser aplicável à poesia de José Décio e à poesia da pós-modernidade:
Toda a poesia moderna oscila entre estes dois polos: o delírio e a razão. Mas a possibilidade de uma harmonia entre os dois, entre o inconsciente e o consciente, entre o ilógico e o lógico, entre o vidente e o racionalista, é uma constatação que podemos verificar tanto em filosofia da arte como na própria obra de arte. Esta harmonia é que vamos encontrar, por exemplo, o poeta que é considerado a primeira figura da poesia moderna: Baudelaire. Como se sabe, Marcel Raymond colocá-lo, com muita exatidão, como centro das duas principais correntes da poesia moderna –– a dos “artistas”, através de Mallarmé e de Valéry e a dos “videntes”, através de Rimbaud.
Na verdade, todo o ensaio de Lins é de uma bela rosa-dos-ventos para quem queira entender a poesia que permanece do período em que escreveu José Décio, o poeta noturno goiano, perdido entre o dia e as noites insones, entre o delírio e a razão poética.
Entender a esquizofrenia e sua influência. na vida de um artista pode ter alguma importância. para a melhor fruição crítica do que se lê. A insônia de José Décio é sabidamente matéria de poemas e tema de conversas com os amigos. Haveria vínculo clínico entre insônia e esquizofrenia?
Sabemos que no quadro da esquizofrenia, os estados melancólicos são relevantes. Resta descobrir o quê, na visão de um profissional da psicologia atual, isso pode representar para a produção de um poeta (ou do artista em geral). Apesar de não termos fontes que nos apontem como ele soube que era esquizofrênico, sabemos que a esquizofrenia em José Décio se manifestou loucura quando preso pela polícia. de Vargas no Rio; notícia. dado pelo Correio da Manhã, em setembro de 1946 e transcrita na “Nota dos Editores” no recém-lançado livro:
O jornalista José Décio, vítima de estúpida agressão policia.l, foi recolhido à enfermaria da Penitenciária do Estado, a pedido de pessoas da família. O referido jornalista sofreu uma grave depressão moral, em consequência. da prisão e do espancamento, parecendo estar sofrendo de sérios distúrbios mentais.
A psicanalista Stella van der Klugt, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), diz que “a esquizofrenia uma forma de loucura –– em que a pessoa ouve vozes, tem alucinações, sofre de violentas alterações de humor; pode ter insônia, mas esta não é uma decorrência. da depressão”.
A especia.lista também afirma que “a esquizofrenia pode ter muita influência. na produção artística, tal como ocorreu na arte de Arthur bispo do Rosário que estava internado num hospício e foi considerado um grande artista reconhecido internacionalmente, uma mente brilhante que se manifestou através da doença”.
Segundo a escritora Lucia.na Hidalgo, Arthur Bispo do Rosário perambulou numa delicada região entre realidade e delírio, vida e arte: No refúgio de sua cela no Hospital Nacional dos Alienados, na Praia Vermelha, o paciente psiquiátrico produziu mais de mil obras consagradas no mercado internacional de arte contemporânea. Criou um universo lúdico de bordados, assemblages, estandartes e objetos durante os mais obscuros períodos da psiquiatria –– época dos eletrochoques, lobotomias e tratamentos violentos aplicados para o controle de crises. Sem se dar conta, Bispo não só driblou os mecanismos de poder no manicômio como utilizou sobras de materiais dispensados no hospital para criar suas obras, inventando um mundo paralelo, feito para Deus.
Uma boa analogia literária, levando para o caso-extremo que se tornou para os psicanalistas o de Arthur Bispo do Rosário, teria seu similar na literatura em Antonin Artaud. Outras analogias mais próximas seriam o de Nijinski, na dança, Klaus Kinski, no teatro. Nas artes visuais, há o exemplo melhor e mais recorrente de Van Gogh ou, se quisermos ser mais modestos, o de Camille Claudel, como destaca Zeidler Filho.
O fato comum é que a percepção, a sensibilidade, a transformação em palavras que transmitem coerência. e profundidade das emoções, mesmo tendo um rótulo, um diagnóstico de esquizofrenia, ainda assim tornam-se brilhantes para a arte, assegura Stella van der Klugt. E prossegue: “O estado melancólico na esquizofrenia é o estado mais tranquilo. Penso que é aí que se consegue trabalhar. Na psicanálise, a linguagem seria o sistema de defesa mais sofisticado. A poesia é a linguagem por excelência. onde se condensam as emoções, as imagens, as histórias do ser humano”.
Por ser o poeta o artista mais completo e como a melancolia é por definição um estado permanente, diferente da depressão que pode ser passageira, vale lembrar um dos grandes melancólicos: o poeta francês Charles Baudelaire, que no poema “Spleen” demonstra até no seu último parágrafo um estado de não-esperança:
E os carros funerais, sem música ou tambor.
Vão desfilando em mim e a esperança dest’arte
Vencida, chora; e a angústia, a estorcer-se de dor,
Sobre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.
(Flores do Mal, Baudelaire, trad. de Jamil Almansur Haddad, 1958)
O editor Mário Zeidler Filho também vê na melancolia, mesmo que em seu estágio “pós-crise” uma boa chave para a poesia de José Décio. Esse “estado melancólico” pode fazer surgir momentos de “hiperlucidez”, uma visão por demais cruenta ou desesperançada do mundo; uma falta ao mesmo tempo de solução e de mistério. Daí o desespero de Antonin Artaud ou de um Van Gogh, o louco como (e por ser) hiperlúcido.
Há ainda o exemplo de outro melancólico produtivo, o judeu-austríaco W. Benjamin. Num comentário à obra de Susana Kampff Lages (“Walter Benjamim –– Tradução e Melancolia”), Cláudia Santana Martins, assim resumiu a situação:
A melancolia se caracterizaria por um desânimo doloroso, desinteresse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição da produtividade e baixa autoestima. Trata-se de um delírio predominantemente moral. O “eu” do melancólico cinde-se e uma parte analisa criticamente a outra. Na base do sentimento melancólico, estaria a decepção com um objeto amoroso a que o “eu” se ligou de modo narcisista.
Em vez de criticar o objeto amado diretamente, o melancólico volta as críticas para si mesmo. O estado melancólico corresponderia, de modo aproximado, ao que hoje em dia chamamos de depressão.
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