quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Amapá em Brasília

 

Autor(es): Ana Miranda
 

Imagine a floresta amazônica, um rio passa entre árvores, pássaros gritam, barcos navegam contra o pôr do sol... Os nomes dizem muito: Xarapucu, Afuá... Um menino viaja pelas águas, descobrindo o mundo. Ele conhece a alma das matas, viveu sempre entre as sombras misteriosas daquele reino encantado e perigoso, sem medo, é um ser da floresta. Vai morar na periferia de Macapá, onde há escola, e trabalha vendendo jornais e frutas e loterias para ajudar nas despesas da família pobre. Entra num seminário de padres italianos humanistas, mas não vai ser padre; seu fascínio é a política: grita contra a opressão da ditadura, entra para a Aliança Libertadora Nacional, vai de encontro a Marighella, estuda economia.

Casa com uma moça linda, nascida por mãos de parteira, que viveu a apartação cruel entre pobres e ricos durante os anos em que morou numa mineradora norte-americana encravada na floresta, em Serra dos Navios. A doçura do casal é comovente, ambos com traços indígenas no rosto, austeridade e modéstia no vestir, aparência frágil, mas de uma força extraordinária. Sonhadores, vivem para melhorar o mundo. A caminho de uma região de extrema pobreza, para onde vão fundar uma resistência, são presos. Ela espera uma criança, tem já uma imensa barriga.

O que acontece a partir dessa prisão está escrito num livro de memórias, que acaba de sair: Florestas do meu exílio. Além de contar criteriosamente a saga vivida pelo casal, com sua filhinha, entre fugas dramáticas, perseguições, torturas de naturezas várias, vidas subterrâneas que fazem lembrar as cenas mais terríveis de Dickens, Conrad, Victor Hugo, até mesmo Graciliano Ramos ou Kafka, o livro tem outra virtude: revela um Brasil e uma América Latina “que poucos conhecem em todo seu encanto e rudeza, entre florestas, cumes andinos, pueblos, vinhedos, com suas canções, insurreições, fomes, tragédias e soluções de vida”, como escrevi nas orelhas do livro. “Vemos vilezas e horrores, mas também o dom humano de amar, apoiar, acreditar, lutar por um ideal; pessoas que nada possuem e são capazes de doar, desafiar gigantes, arriscar suas vidas”.

Esse casal, hoje, vive em Brasília, e tem uma biografia da maior retidão, pela veemência de sua fé e firmeza e lealdade. Ela é Janete Capiberibe, deputada por seu estado, o Amapá, e ele, João Capiberibe, senador da República e autor das memórias.

Jamais abandonaram suas crenças, nem as florestas. Depois do sofrimento de oito anos no exílio, ele foi governar o Amapá, e o fez com o conhecimento e amor nascidos no coração daquele menino; e ela, representante eleita, retribuiu o que havia aprendido com o povo. Trabalharam sempre contra os predadores das florestas, das cidades e dos orçamentos públicos; a favor das crianças pobres, mulheres, parteiras, da gente simples que vive nas matas produzindo mel, açaí, farinhas, colhendo castanhas, dos índios, pescadores, seringueiros, e toda a gente boa do Amapá.

Outro lado bonito do livro Florestas do meu exílio é a voz do autor. Mesmo numa situação tão extrema, é uma narrativa sensata, íntegra, aguda, capaz de compreender as razões mais profundas dos sistemas e das pessoas, não apenas as almas que auxiliam, como o lado mais vil da fome dos lobos. Uma voz paciente, corajosa, obstinada, moderna, que ainda sonha e acredita.

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