RESUMO Na esteira da reedição de Leminski, Ana Cristina César e Waly Salomão, encontro literário de Paraty recebe ex-integrante do coletivo carioca que fazia teatro e música e "dizia poesia" nos anos 1970. Autores, estudiosos e editores analisam como a geração que nasceu à margem do mercado editorial agora assimilada por ele.
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"Entre escritor/ e leitor/ posta-se o intermediário,/ e o gosto/ do
intermediário/ bastante intermédio./ Medíocre/ mesnada/ de medianeiros
médios/ pulula/ na crítica/ e nos hebdomadários."
Estes versos de "Incompreensível para as Massas", poema de Vladímir Maiakóvski, em tradução de Haroldo de Campos, poderiam servir de epígrafe produto poética daqueles que, livreto em punho, ofereciam sua poesia diretamente ao leitor. Volumes caseiros, produzidos manualmente à beira do sistema editorial, eram o trato de união do que se chamou "poesia marginal", nos anos 1970 e 80.
Elisa Von Randow | ||
Nesta semana, na Flip, um deles, Charles Peixoto, se rene com Eliane Brum e Gregorio Duvivier para falar das relaes entre prosa e poesia, na quinta (31), s 12h. No mesmo dia, s 18h, na FlipMais, programao paralela do evento, debate com a compositora e escritora Adriana Calcanhotto na mesa "Versos de Risco - do Haikai Poesia Marginal".
Charles lana neste ms sua obra reunida -embora no completa. "Supertrampo" [7Letras, R$ 39, 200 pgs.] abarca poemas de "Travessa Bertalha 11" (1971) at seu livro mais recente, "Sessentopeia" (2011) -alguns inditos entraram de raspo no final da edio.
O convite para a festa literria deve servir a despertar o interesse pela poesia, hoje pouco conhecida, de Charles e do grupo Nuvem Cigana, coletivo multicultural do qual fez parte, que agitou o Rio na virada dos anos 1970 para os 80 e que reuniu, entre muitos outros, o tambm poeta Chacal e o compositor Ronaldo Bastos.
TOCA
Charles Peixoto abre a porta vestindo cala de flanela xadrez e crocs azuis. O pequeno apartamento meio escondido no final do Leblon sombreado e tranquilo. Faz pensar mais numa toca do que na rua ruidosa de seus poemas de juventude, em que meios de transporte so moldura para recordaes ("tenho duas meias de l metidas no saco/ e a janela do nibus para pensar") ou um passeio pelo bairro onde nasceu em 1948 tem algo de ameaador, como em "Colapso Concreto": "vivo agora uma agonia:/ quando ando nas caladas de Copacabana/ penso sempre que vai cair um troo na minha cabea".
Neto do poeta Ronald de Carvalho (1893-1935), a quem deve o nome de batismo, Carlos Ronald de Carvalho, Charles procurou evitar sempre qualquer vnculo com a produo potica do antepassado modernista ou com uma herana cultural que no teve.
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"Comecei a comprar uns livrinhos, coleo Nossos Clssicos, baratinha. Li os modernistas, os clssicos mesmo achava chato", lembra Charles. "Gostava do Manuel Bandeira, do Oswald, do Mario. Americanos, russos, Maiakvski, fui adquirindo do jeito que dava. A comecei a escrever."
Menino, Carlos estudava em um colgio tradicional de Botafogo, o Santo Incio. "Era pssimo aluno. At que tomei um pau no quarto ginasial e fui pro Princesa Isabel." O novo colgio, diz, seria "uma maravilha, porque tinha mulher". A professora de portugus do adolescente era Ana Maria Machado, "uma lindeza, muito novinha, tinha 20 e poucos anos". "Um dia teve uma redao e ela falou: 'Voc tem jeito pro negcio'. Pensei: 'Estou impressionando a gata'. A acho que a coisa evoluiu, me deu mais fora, comecei a catar mais coisas, fui lendo."
Ainda assim, pensou em fazer arquitetura, para ficar na tradio dos tios engenheiros, mas com mais criatividade. No passou nesse vestibular, mas sim no da ECO, a Escola de Comunicao da UFRJ, onde foi colega de Chacal.
Na poca, conheceram Guilherme Mandaro. Militante no movimento estudantil e tambm poeta, ele seria o responsvel pela impresso clandestina de "Muito Prazer, Ricardo", de Chacal, e "Travessa Bertalha 11" -que Charles j assina com o pseudnimo de prenome anglicizado e sobrenome tirado "do nada", como recorda-, rodados numa noite de 1971 no mimegrafo do cursinho onde Mandaro lecionava histria.
De Mandaro, Charles diz que "era muito culto: ele sim, tinha uma biblioteca, tinha lido tudo". Tornou-se, por tudo isso e pelo seu suicdio, aos 26 anos, em 1979, gide mtica do que seria a Nuvem Cigana, ao qual se incorporariam um pouco mais tarde.
COLETIVO
O coletivo de nome hippie reuniu, alm de Charles, Chacal e Mandaro, outros poetas, como Ronaldo Santos e Luis Olavo Fontes, o fotgrafo Cafi e o compositor Ronaldo Bastos (que havia registrado esse nome fantasia, pensando em fazer uma produtora como a Apple, dos Beatles -"as coisas eram ambiciosas", sorri Charles). E mais um bom nmero de artistas, arquitetos, msicos mais ou menos frequentes.
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Se no nasceu ali uma produtora do porte ambicionado, a Nuvem conseguiu, de todo modo, interferir no clima cultural do Rio naqueles tempos, promovendo as tais Artimanhas, encontros nos quais se subia ao palco -muitas vezes improvisado, muitas vezes nem palco- para apresentar peas e nmeros musicais e para dizer poesia (no se usava "declamar", que coisa de salo).
A primeira dessas Artimanhas se deu em outubro de 1975. Pensada inicialmente como uma exposio de livros e de arte, ao longo de trs dias, na livraria Muro, em Ipanema, a festa acabou abrindo espao, sem planejamento, para a poesia, dita de "impromptu".
Aps ter j tomado algumas doses de alert limo (drinque cuja composio exata permanece desconhecida), Chacal abriu os trabalhos, dizendo seu "Papo de ndio". E o formato, nascido assim organicamente, se instaurou.
Orgnica tambm era a orientao poltica do coletivo, que resistiu sistematizao dos grupos de estudos, das leituras marxistas que fundamentavam a luta antiditadura. "Ningum seguia, todo mundo achava chato. Era um grupo de reao, mas com um 'approach' meio anrquico. A esquerda achava que a gente era alienado, maconheiro, drogado, maluco, e a direita achava que a gente era subversivo", define Charles.
Em uma cena, a resistncia segundo a Nuvem era assim: sair sambando, qual num cortejo do Charme da Simpatia (bloco carnavalesco da trupe), enquanto a polcia ameaava dispersar no cassetete uma Artimanha no vo do Museu de Arte Moderna.
EJACULAO
A possibilidade de "dizer" ou "falar poesia" acabaria se transformando em finalidade. "Num determinado momento, essa coisa comeou a ser to determinante que o texto comeou a mudar", conta Charles Peixoto. "Ditos", os "quase haicais" dos primeiros livros do selo Nuvem Cigana pareciam uma "ejaculao precoce", segundo o poeta. "Comearam a sair uns textos maiores, escritos para serem falados."
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O segundo poema "dito" na Artimanha inaugural havia servido de passe de entrada a Bernardo Vilhena, incorporado ao grupo um pouco mais cedo, naquele mesmo ano. Vilhena vinha trabalhando com artes grficas e assumiu produzir em cima da hora o livro "Amrica", de Chacal, no lugar do artista plstico Carlos Vergara.
Na ida ao bairro de So Cristvo, onde ficava a grfica, Vilhena revelou ao novo conhecido tambm escrever poesia. E ali, esperando o nibus, disse a Chacal seu poema que sabia de cor e que seria seu hit de Artimanhas, e por muito tempo depois, "Vida Bandida", na verso musicada por Lobo.
Responsvel mais tarde por outro sucesso dos rdios, "Menina Veneno", gravada por Ritchie, Vilhena enveredou pela produo musical e editorial. Continuou a escrever poesia e, coincidentemente, como Charles, tem agora sua obra potica reunida, em "Vida Bandida e Outras Vidas" [Azougue, R$ 42, 200 pgs.].
Ele recorda o carter aberto da Nuvem Cigana. "A gente teve primeiro esse negcio do coletivo, uma coisa indita. Havia pessoas com diferentes habilidades. O cara que escrevia, o que fotografava, o que diagramava, o que fazia o cartaz. Iam acabando as funes. Graas a Deus, sempre tinha algum que se oferecia para ser o cara que colava o cartaz."
O que se produzia na Nuvem era muito discutido, de forma "intuitiva", diz Charles. "O Chacal era conhecido como Mrcia de Windsor" -em referncia jurada de programa de calouros que "achava tudo timo". "Eu era o Pedro de Lara! Tudo eu criticava."
A mentalidade mais agregadora de Chacal talvez explique por que ele, de certa forma, se tornou um elo perdido entre os nefelibatas de ento e os jovens poetas de hoje. O formato das Artimanhas, em alguma medida, se perpetua no projeto CEP 20.000, que ele toca h 24 anos no Rio -primeiro no Espao Srgio Porto, no Humait, e, desde h alguns meses, na casa de shows Imperator, no Mier.
"Guardados os contextos bem diferentes, o CEP e as Artimanhas so bem semelhantes", diz Chacal. "A iconoclastia, a experimentao, a informalidade, so as mesmas. A mistura das diversas linguagens e geraes e a intimidade das pessoas com a poesia falada so bem outras."
Ele, que teve sua obra produzida at 2007 reunida em "Belvedere" -dentro da coleo s de Colete (Cosac Naify/ 7Letras)-, nota pouca regularidade na produo de seus companheiros. "Os poetas da Nuvem publicaram pouco desde os anos 70. Ronaldo Santos e Bernardo Vilhena no publicaram nenhum livro de poemas". Mas diz admirar muito os poemas recentes de Charles. "Mantm a pegada esdrxula", define.
ENCALHE
Antes deste "Supertrampo", Charles Peixoto havia lanado, em 1985, "Marmota Platnica", reunindo seus seis primeiros livros. Um fato, porm, o fez desistir por um longo tempo de publicar seus escritos.
"Quando fiz o 'Marmota', foi a maior empolgao, uma festa tima. A passou o tempo e no aconteceu nada. Nem uma crtica que dissesse 'que merda!'. Um dia no tinha mais livros e fui l na [editora] Taurus para pedir uns cinco exemplares. O editor falou 'entra ali'. Entrei e vi uma montanha de livros. A viso me deprimiu. Para que fazer isso? Para dar comida pra traa? Mas continuei."
Nesse tempo seguiu, e segue, na Rede Globo, onde havia comeado a trabalhar em 1981, primeiro como redator publicitrio na agncia interna da TV -pondo fim a uma carreira de bicos e lares errantes, cerca de um ano antes do nascimento de sua filha, Lusa.
Depois de um tempo "batendo ponto" na agncia, "s vezes virado, de ressaca", fez a oficina de roteiro de Doc Comparato. Ento passou a colaborar, de casa, "ganhando menos, mas com liberdade", com o ncleo de humor da TV.
Comeou desenvolvendo esquetes de "Viva o Gordo", programa de J Soares. Escreveu "Armao Ilimitada" e "Malhao". Seu trabalho mais recente est atualmente no ar -"O Rebu", adaptao da novela de Brulio Pedroso (1974), em exibio na faixa das 23h.
Charles conta ter hesitado em fazer a nova coletnea. Seu editor, Jorge Viveiros de Castro, a defende, dizendo que "Supertrampo" "traz uma releitura atualssima da sua obra de juventude junto com sua poesia 'madura', que revela o mesmo vigor e criatividade que sempre marcaram seu trabalho".
" interessante estarem lanando obras reunidas de gente viva e que estaria no segundo plano do panorama potico daquele tempo", aponta a crtica literria Flora Sussekind. "No no interior de cada grupo em que operavam, mas no ponto de vista mais global, de recepo, seriam figuras de fundo. Uma margem da margem", diz.
Os nomes mais centrais, digamos, por serem mais estudados e difundidos, seriam os h pouco reeditados pela Companhia das Letras.
Sofia Mariutti, editora responsvel pelos volumes que coligem as obras completas de Leminski, Ana Cristina Csar e Waly Salomo, lanados pela editora de Luiz Schwarcz de um ano e meio para c, diz que os trs conjuntos integram um projeto da casa de "resgatar autores que carregavam esse rtulo de marginais e por isso andavam injustamente marginalizados das vitrines das livrarias".
Paulo Werneck, curador da Flip, tambm comenta a centralidade atual da poesia dos anos 1970-80. "Est se consumando a 'canonizao dos marginais' -j havia espao nas universidades, mas agora o ciclo se completa."
"Talvez isso se explique por circunstncias biogrficas, mas acho que tambm h uma explicao cultural, histrica; esses autores aconteceram num momento de 'desbunde' que, a partir dos anos 90, j soava 'datado' para crticos, jornalistas e editores. Fechou-se o horizonte em nome de coisas supostamente mais elevadas. muito bom que retorne a abertura para esses malucos", diz Werneck.
AVACALHAO
Foi esse horizonte fechado o que instigou Fernanda Medeiros a estudar a Nuvem Cigana em seu mestrado, concludo em 1997. "O que despertou meu interesse foi o discurso da crtica literria, que, em sua maioria, avacalhou aquela poesia mais marginal, a do Charles, do Chacal", diz Medeiros, que leciona literatura inglesa na Uerj. Ela aponta, porm, para um movimento lateral ao da academia, em que poetas/editores como talo Moriconi e Carlito Azevedo "reavaliaram" a poesia dos anos 70.
Na opinio de Carlito Azevedo, a Companhia das Letras tem publicado os poetas marginais que "mais rapidamente foram 'canonizados'". "Mas diga-se de passagem que, quando no eram to cannicos assim, o Luiz Schwarcz j os editava na saudosa coleo de livros Cantadas Literrias, da editora Brasiliense."
Carlito comenta a dificuldade que possa ter o "leitor no especializado" em localizar, hoje, "outros excelentes poetas da poca, como o Eudoro Augusto e a Angela Melim, que h tempos no recebem edies 'encontrveis' -mas vale a pena o esforo de procurar".
Para o poeta e editor, porm, a maior contribuio que permanece daquela poesia hoje, "quando aquele tipo de 'flagra no ego' j no parece to produtivo, est na forma como encararam o suporte material dos textos, ou seja, a liberdade que tomaram em relao ao formato do livro tradicional a partir do momento em que assumiram que sua veiculao fugiria dos padres habituais".
Ele enumera algumas tentativas, como a do selo Lbia Gentil (da galeria Gentil Carioca) de retomar "um pouco desse esprito que foge do padro comum a que as editoras continuamente esto submetendo os poetas, na duvidosa expectativa de que eles venham a disputar um lugar ao sol do mercado".
"Essas produes artesanais, em geral dirigidas por artistas plsticos e poetas, so a melhor notcia para a poesia dos ltimos tempos, e uma herana direta do trabalho de artistas como Di, Cafi, Srgio Liuzzi, que deram cara e feies poesia marginal."
RETR
Sofia Mariutti aponta um aspecto mercadolgico no interesse algo revigorado em torno da poesia marginal. "Acho que tem a ver com a fora do retr, as mquinas de escrever, mimegrafos, as vitrolas e vinis e mquinas fotogrficas esto fetichizados, h uma dose de saudosismo." Mas tambm recorda essas editoras artesanais, "surgindo nos fundos dos quintais, que acabam retornando a esses meios de produo porque eles fazem sentido em escalas menores".
Para Claudio Lobato e Paola Vieira, que tm se debruado sobre a histria da Nuvem Cigana para seu filme, as questes so mais de fundo. Na opinio de Lobato, h uma "necessidade de se reinventar e de se divertir com isso; de tirar chinfra com a cultura e a civilizao". "Ampliar o campo do possvel, como disse o Sartre aos estudantes em 68."
"O mundo andava muito chato de uns tempos para c, com todo mundo querendo fazer tudo certo, para vencer num ambiente muito competitivo e materialista. Embora o contexto seja outro, a poesia marginal teve naquela poca essa funo de romper, de mudar o foco. E hoje eu vejo essa necessidade", diz Vieira.
Charles Peixoto diz no saber responder por que haveria essa possvel redescoberta dos marginais. Mas a sada diante de uma poesia que voltou ao beletrismo e que pode at ser "muito bem feita", mas que lhe parece uma "involuo" do que a sua gerao conquistou. Depois pondera.
"Ser que a gente era assim to importante? Como avaliado isso que a gente fez? Eu nunca procurei saber, mas ser que nego avalia isso como um tipo de poesia de um momento histrico e que, saindo daquele momento, no presta para nada? Ou presta ainda?"
FRANCESCA ANGIOLILLO, 42, editora-adjunta da "Ilustrssima".
ELISA VON RANDOW, 38, ilustradora.
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