Seg, 20/07/2015 às 07:32
Kátia Borges
Em seu novo livro, O labirinto de Orfeu, o senhor oferece ao leitor, a um só tempo, a fruição de 146 sonetos e vasto material reflexivo sobre o fazer poético. O que o leva à poesia em um universo tão violento e conturbado?
É justamente esta agonia do mundo. O materialismo grosseiro que domina o século exige de nós reflexão, sobre a poesia e sobre os caminhos que a humanidade deve seguir. Desde adolescente, e curiosamente, porque não tinha irmãos e meus pais nunca se interessaram por livros, comecei a me dedicar à criação literária de modo geral. Mas o grande impulso nessa direção veio quando conheci Glauber Rocha no Central. Ele teve um papel decisivo em minha vida e tenho imensa alegria em registrar isso. É verdade que antes eu já fazia esboços poéticos. Mas foi só a partir das leituras feitas por ele, do estímulo dado por ele, que decidi me dedicar mais seriamente à literatura.
A poesia teve papel relevante desde sempre na vida e na história, mesmo na guerra e na política, temas aparentemente estranhos ao lirismo. Qual o papel da poesia na contemporaneidade?
É inegável a importância histórica da poesia. No ensaio introdutório de meu livro, após exaustiva pesquisa, mostro como a vida humana está, desde a sua origem, impregnada de poesia. Mesmo nas sociedades primitivas, rudimentares, tribais, contrariando aquilo que se pensa sobre esta arte, que é refinada, afetada, apenas para letrados, a poesia sempre fez parte do cotidiano. Na Alemanha, por exemplo, era usada para codificar as leis nas tribos, por ser mais fácil memorizar as leis em versos. Teve papel fundamental na guerra - durante a invasão da Normandia, os aliados antes avisaram aos franceses que iriam iniciar a operação com um poema de Paul Verlaine - e foi uma forma de resistência nos campos de concentração. No livro, cito um poeta polonês que promovia recitais de poesia no Gueto de Varsóvia, que foi a expressão máxima da crueldade nazista, e há poemas criados naquela época, registrados nas paredes do Museu do Campo de Auschwitz. Poesia é, sobretudo, resistência.
Em que medida ainda faz sentido falarmos em vanguardas?
As vanguardas sempre irão existir, porque a ânsia de renovação é inerente à natureza do homem. As vanguardas têm um papel importante, mas também podem levar ao extremo, que é o radicalismo e a negação do passado, por acreditar que é a partir dela que o processo literário se instala. Ora, o corpus literário é feito de tudo aquilo que se produziu, que se está produzindo e que se irá produzir, ele é uma caminhada no tempo. É o retorno eterno da literatura, que volta aos seus temas, aos processos criativos, mas sempre busca, ao mesmo tempo, uma linguagem nova, a transformação das formas, a renovação, isso se dá em todos os níveis da criação humana.
O senhor é também autor de livros teóricos, biografias e crônicas. Qual espaço a poesia ocupa hoje em sua vida?
Um grande espaço. Eu tenho quatro livros de poesia editados: O ciclo imaginário (Arpoador, 1975), O domador de gafanhotos (Fundação Cultural, 1976), A esfinge contemplada (Nova Fronteira, 1988) e este agora, O labirinto de Orfeu (Topbooks, 2015), que é, na realidade, um mistro de poesia e ensaios. Tenho também um livro de contos, que considero extremamente importante dentro da minha obra literária e que se chama O telefone dos mortos (Nova Fronteira, 1997). Este livro foi elogiado pelo crítico literário Wilson Martins (1921-2010), que se referiu aos meus contos como pequenas obras-primas em vários jornais. E tenho ainda um livro de ensaios e crítica literária de cujo nome gosto bastante, A tempestade engarrafada (EGBA, 1995), no qual abordo, em um dos textos, a poesia da portuguesa Florbela Espanca e da argentina Alfonsina Storni, que escreviam com grande intensidade emocional. Eram tempestuosas, mas, ao mesmo tempo, escreviam sonetos, que é uma forma fixa e que arruma a emoção, uma forma que põe a emoção em um recipiente que reprime o tumulto emocional.
O senhor é biógrafo de Glauber Rocha (Esse vulcão, Nova Fronteira, 1997). Como foi essa relação com o cineasta?
Ah, esse livro sobre Glauber é um livro essencial, muito importante, porque, como disse desde o início, Glauber foi um querido, um amigo, um irmão, e convivemos intensamente. A primeira viagem que ele fez para conhecer o Nordeste, para estudar o Nordeste, substância de seus filmes, foi comigo. Nós saímos de Salvador e fomos até Caruaru. Quer dizer, eu não fui, porque sofremos um grave acidente na estrada, o ônibus ficou devastado, com muitos feridos hospitalizados, e acabei voltando do Recife, enquanto ele, que não se machucou, seguia sozinho. Mas estive presente em praticamente todos os momentos importantes da vida dele, inclusive os mais traumáticos. Esse é um livro insubstituível, porque ninguém viveu a experiência glauberiana como eu.
Como vê hoje a expressão intelectual no Brasil e especialmente na Bahia?
A Bahia é uma terra rica em todos os níveis ainda hoje. Mas não há como falar sobre a expressão intelectual da Bahia sem citar Jorge Amado, autor de uma obra maravilhosa, e Dorival Caymmi, que eternizou canções praieiras ainda hoje presentes nas festas populares. Lembro de uma ocasião em Odessa, na Ucrânia, às cinco da tarde, quando comecei a ouvir uma música familiar. Era Caymmi. Um ensaio de ginástica artística de jovens ucranianos, mais de 300, ao som da Suíte dos pescadores. Chorei de emoção.
O senhor esteve à frente da renovação da linguagem jornalística baiana. Como foi essa experiência?
Fizemos essa renovação com Glauber Rocha, e ela foi feita basicamente para concorrer com A TARDE, que era então o único jornal de peso, além do Diário de Notícias, dos Diários Associados. Glauber levou para a redação do Jornal da Bahia, que começa em setembro de 1958, os seus amigos da Geração Mapa. Fomos eu, Fernando Rocha, Paulo Gil Soares, Florisvaldo Mattos... E implantamos então na Bahia as técnicas modernas que já estavam em voga no Rio de Janeiro, no Jornal do Brasil e no Última Hora. Adotamos o lead, por exemplo.
O senhor depôs recentemente à Comissão Nacional da Verdade na Bahia. Como o senhor vê as manifestações nas ruas desde junho de 2013 até agora?
São manifestações autênticas de inconformismo. A verdade é que a figura do político está completamente desmoralizada no Brasil, de forma até mesmo perigosa, por conta da ameaça de sistemas de exceção. Sinto que há um desencanto profundo e irreversível, no momento, em relação à política. Por outro lado, penso que nossos políticos são merecedores de todo esse desprezo que está sendo votado a eles. Em meu depoimento, falei sobre a repressão e sobre o risco que corremos hoje de voltar ao jugo de tiranos. E não existe coisa pior nesse mundo que a tirania, sobretudo quando ela quer calar a voz da imprensa e bloquear o pensamento humano. E, o pior, ela é cíclica e pode retornar a qualquer momento.
É preciso então, imagino, resgatar a memória da imprensa baiana em sua dimensão revolucionária.
Sim. E em meu depoimento falei sobre a experiência do Jornal da Bahia, que dirigi e que foi censurado por ser considerado foco de subversão; não era, o jornal apoiava as Reformas de Base. Jango não era um extremista, ele foi levado de roldão pelos extremos da esquerda brasileira. Por isso, penso que é preciso hoje conduzir as coisas com maior habilidade.
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