quinta-feira, 3 de julho de 2014

Dois poemas inéditos - Ivan Junqueira


DOM QUIXOTE

Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.

Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.

O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro

quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?

Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia

de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes

e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.

Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,

nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.

Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.

E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.

Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.

Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia

– eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.

E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,

sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.

De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.

Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.
 

A IMORTALIDADE

O que é a imortalidade?
Um sopro que nos carrega
para os confins da orfandade,

onde o espírito se nega
e de si já não recorda
após a última entrega?

Que luz é a que nos acorda
quando a morte, em dada hora,
bate à porta e chega à borda

do ser que se vai embora,
mas crê que não vai de todo,
pois do invólucro que fora

algo fica em meio ao lodo
que lhe veste o corpo morto
com a púrpura do engodo?

E o que cabe ao que foi torto
e nunca exigiu conserto?
Irá chegar a algum porto?

Será que na alma um aperto
não lhe purgou a maldade
quando do fim se viu perto?

O que é a imortalidade?
Uma insígnia, uma medalha
com que se louva a vaidade?

Ou não será a mortalha
que te poupa só a cara
escanhoada a navalha?

Será talvez a mais rara
das obras que publicaste
ou da crítica a mais cara?

Será isto, já pensaste,
a herança em que se resume
o que aos amigos deixaste?

Esquece. Sente o perfume
de algo que se fez distante:
a mão de uma criança, o gume

de seu olhar penetrante
quando viu, no ermo do cais,
que o tempo que segue adiante

é o mesmo que volta atrás
e confunde a realidade,
e a desmantela, e a refaz.

É isto a imortalidade:
esse eterno e estranho rio
que corre em ti e te invade.

E o mais é só o pavio
de um lívido círio que arde
no insuportável vazio

que enche toda a tua tarde.

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